Lide-se como se lidar com a questão sanitária, o impacto da pandemia nas economias africanas será devastador, diz o antigo braço-direito de Kofi Annan na ONU. O seu trabalho na economia e na política visa reformar, inverter perceções negativas e levar África a dialogar, finalmente, “de continente para continente”
POR CRISTINA PERES
Deutsche Welle, RFI, AllAfrica.com, Accord.org.za, “El País”, IndiaChinaInstitut.com, “Le Monde”, “The Telegraph”, “Project Syndicate” e muitos outros publicam entrevistas, vídeos, divulgam master classes e op-eds que espelham as opiniões refletidas sobre África de um dos mais vigorosos intervenientes na política, educação e redesenho do continente. Carlos Lopes falou ao Expresso a partir da Cidade do Cabo, onde reside e leciona na Escola de Governação Pública Nelson Mandela da UCT (University of Cape Town) que, a par de Oxford, Sheffield e do MIT, conta cinco cursos online entre os melhores do mundo. Ex-secretário-executivo da Comissão Económica para África das Nações Unidas (UNECA, 2012-16), foi um dos braços-direitos de Kofi Annan, é o atual alto-comissário da União Africana para as relações com a Europa e é conselheiro de um largo número de chefes de Estado e do Governo africanos. Nascido na Guiné-Bissau em 1960, estudou História, especializou-se em Economia e tem ideias para África que vão do inovador ao revolucionário, como a que defende que metade do ensino primário no continente deveria ser dedicado a algoritmos. Visões como esta estão reunidas numa série de livros, o mais recente dos quais tem versão portuguesa, “África em Transformação”. Saiu ao mesmo tempo que a prestigiada Routledge lançava “Structural Change in Africa”, escrito com George Kararach.
O FMI colocava 16 economias africanas entre as 30 em todo o mundo que teriam maior crescimento económico em 2020. O continente é variado, tem uma população muito jovem, e recebe a crise pandémica em diferido. Economias como a do Zimbabwe, já antes delapidadas, vão sofrer...
Nas minhas previsões, o Zimbabwe vai ser a economia com o maior decréscimo em toda a África, provavelmente -20% do PIB. É devastador, mas trata-se de um conjunto de circunstâncias onde a covid-19 só acrescenta. A retoma vai ser extremamente lenta. Se a trajetória do vírus chegar a África na cauda da sua deslocação geográfica, haverá reforço da lentidão. Se em vez de termos o pico da pandemia em junho o tivermos em setembro, como se prevê, vamos sair mais tarde da crise. A lenta está assegurada por razões estruturais: as commodities representam cerca de 60% das exportações africanas dos quais 40% é petróleo. Durante uns seis meses, o mercado do petróleo a nível mundial será mais de oferta do que de procura, é preciso reduzir os stocks para capitalizar as empresas do sector que, infelizmente, nos últimos 20 anos, foi deslocado para as companhias intermediárias de comércio de commodities, que estão na Suíça. Essa fonte de 60% do continente está comprometida até 2021. A segunda fonte de receita são as remessas de imigrantes que, como nós sabemos, vão ter uma redução entre 20% e 30%, segundo o Banco Mundial, dependendo dos países. Será brutal: o montante das remessas para África em 2019 foi de 60 mil milhões dólares, quantia muito superior à da ajuda ao desenvolvimento. As remessas são uma fonte maravilhosa e segura para os bancos centrais africanos porque são regulares e não sujeitas a negociações. Nos últimos dez anos só aumentaram.
Daí que os africanos vejam as migrações de uma forma diferente da dos europeus, como diz.
Exato. A terceira fonte de receita é o acesso à dívida, ou seja, empréstimos. Apesar da fama de má gestão da dívida que os países africanos têm, depois da crise de 2008-09, eles tinham o maior recorde de rácio de dívida em relação ao PIB do mundo, era 32% à saída da crise. Naquela altura era comparável aos países do Golfo, só para dar uma ideia. O que aconteceu é que as economias em África cresceram ao longo deste século ao ponto de, em 20 anos, terem duplicado o PIB. Quer dizer que para financiar a economia com dívida seria necessário o dobro dos recursos que eram precisos em 2000. Acontece que os empréstimos concessionais para África, os do Banco Mundial e do FMI, do Banco Europeu de Investimentos, etc., com taxas baixas entre 0% e 1%, não duplicaram. Os países tiveram de ir buscá-lo ou ao crédito comercial a taxas de juro de 6%/7%. Ou ir ao tipo da esquina que percebeu o negócio e oferece 3%/4% de taxa, a China. E hoje em dia, a principal dívida que temos é com a China. Era o segundo mal menor.
As remessas de imigrantes para África em 2019 foram de 60 mil milhões de dólares, superiores à ajuda ao desenvolvimento”
Defende uma reestruturação dessas políticas económicas e do comportamento das agências de rating.
Tem a ver com vários fenómenos, o primeiro é a lista de condicionalidades do FMI que determina os instrumentos a utilizar nos países. Para países como os nossos, a lista tem o elemento “sustentabilidade da dívida” e enquanto não se mudar a lista seremos julgados por ela. O elemento considera tudo o que seja despesa social como um gasto negativo. Quer dizer... assim não vale! (risos). Como a covid-19 é uma pandemia global já criou regras novas. Os técnicos do FMI dizem pérolas impensáveis há um ano como a afirmação do diretor do FMI para África: “Esqueçam os défices!” Esqueçam os défices? Isto é extraordinário! O comportamento das agências de rating em relação a África é impossível. Se as economias crescem mais do que a média mundial durante 20 anos e há mais downgrades do que upgrades alguma coisa não bate certo! A economia do Senegal, por exemplo, cresceu a 6% nos últimos dez anos e teve dois downgrades, não é possível. Os africanos são tratados de uma forma absolutamente irracional!
O calendário de negociações com a Europa está suspenso? A conferência de chefes de Estado de maio, a cimeira África-UE em outubro... Como prevê o ambiente de negociação África-Europa?
O calendário africano previsto era uma cimeira da União Africana (UA) no mês de maio para terminarmos as negociações principais do tratado de livre comércio, é a peça essencial para a nossa relação com o resto do mundo. Prevíamos, também em maio, uma reunião ministerial África-Europa para preparar a cimeira de outubro. E tínhamos uma cimeira de coordenação da UA prevista nos estatutos com os presidentes dos vários grupos sub-regionais com os cinco do bureau, concelho da UA, que seria em junho. Tudo isso voou. Tal como o quadro de negociação que estava ter lugar em Bruxelas entre os ACP — África, Caraíbas e Pacífico — e a UE e que deveria produzir uma série de resultados intermédios para se poder chegar a um acordo Europa-ACP no final do ano. Para nós, UA, a negociação ACP não é o mesmo que UA, são duas coisas distintas, a Europa quer que seja a mesma coisa. Estou a ser muito transparente, a Europa gostaria que o pilar África dos ACP fosse o pilar da UA e nós dizemos que não. O ACP é um secretariado de países interessados em negociar ajuda ao desenvolvimento, que inclui uma série de países africanos, mas não todos, a África do Norte não está lá. A UA é um quadro político continental que não quer discutir ajuda ao desenvolvimento, quer discutir comércio, migrações, paz e seguranças e mudanças climáticas de continente a continente.
Vai haver a cimeira de outubro?
Previa-se que acontecesse sob a presidência alemã do Conselho Europeu. Portugal queria que fosse durante a sua presidência, que começa em janeiro. A a atual comissão da UA termina o mandato em janeiro e deveria ser eleita uma nova em fevereiro. Aos africanos já não interessa a cimeira em outubro e passaria para janeiro, sob a presidência portuguesa do Conselho, como Portugal queria. Do ponto de vista da substância nós africanos insistimos que é preciso um instrumento para regimentar as relações entre a Europa e a África. O instrumento é um documento com regras de governação da relação. O que atualmente existe é uma espécie de “Maria vai com todas”. Em matéria de comércio nós queremos que o tratado de livre comércio seja um regulamento de entrada para todas as negociações com a Europa. Neste momento, há 13 instrumentos comerciais entre a Europa e a África! O mesmo deve ser aplicado às migrações. E também às mudanças climáticas, tal como à paz e segurança. A Comissão Europeia resistiu muito à ideia de instrumento até à visita que foi feita pela comissão Von der Leyen a Adis Abeba no mês de março. Para nossa grande felicidade, finalmente a CE disse “não, vamos fazer o tal instrumento”. Estamos felizes que vá no sentido certo. A segunda grande questão substantiva é não querermos que a UE decida unilateralmente sobre financiamentos nestas quatro matérias que mencionei, queremos que haja um acordo com contrapartidas dos dois lados. É preciso termos uma elevação do debate. Não podemos ouvir o tempo todo que a Europa é o principal parceiro comercial da África, o que é verdade, sem que também ouçamos que a África é o terceiro maior parceiro comercial da Europa, à frente do Japão, três vezes a Índia, e mais que a América Latina e as Caraíbas conjuntamente. Queremos o instrumento para arregimentar as nossas relações de uma forma diferente e para que se veja que África tem uma importância comercial fundamental para a Europa, só ficando atrás dos EUA e da China como parceiro comercial, se for tratada como um continente.
E a UA representa esse interesse do continente!?
A UA batalha, insiste, nós temos muitos amigos na UE, há muita gente que gosta de África, o que é uma vantagem. Temos também alguns líderes europeus que... também nem gostam da Europa! (risos) É preciso quebrar o pensamento único que foi formatado pelos burocratas.
Falamos de velocidades diferentes e simultâneas. Há acontecimentos que imprimem ritmos diferentes...
Um exemplo: as propostas mais radicais sobre a dívida africana face à covid-19 não vêm de nenhum líder africano, mas do Presidente Emmanuel Macron. Pode-se criticá-lo, mas é uma prova de grande amizade e solidariedade de França com África.
E a liderança mundial? O Presidente Trump não é amigo de alianças, retira-se de África, da Síria, do Afeganistão... A China recebe a oportunidade de bandeja?
Já estávamos em transição a nível global que implica modelos de governação. O mundo anglo-saxão perdendo terreno, a Ásia ganhando terreno, com os seus valores e as suas características diferentes, um pouco mais de qualidade de gestão administrativa e também mais autoritarismo, e a pandemia a acelerar a transição. Estamos a passar para o século da dominação asiática com a China a emergir como líder em áreas de futuro. A nível da tecnologia, os EUA ainda são o grande poder atual. Mas olhando o número de patentes registadas na Organização Mundial de Propriedade Intelectual, onde a China no ano passado ultrapassou os EUA, vemos que o tipo de patentes em que a China lidera são as áreas de futuro. Fala-se mais do 5G e da Huawei porque já existem, mas mais importante são a inteligência artificial, a nanotecnologia e a biotecnologia. Nos três domínios, a China está à frente, donde, é uma questão de tempo até dominar na tecnologia. Do ponto de vista do papel global, a China demonstrou durante esta crise pandémica uma grande debilidade. É um paradoxo, mas não estão ainda preparados para serem um líder global. Nas respostas à pandemia, a China não lidera nada a nível mundial em termos de conceção, políticas ou intervenções. A China aparece, Jack Ma [presidente do grupo Alibaba] distribui máscaras e ventiladores... É significativo que seja Jack Ma e não o Governo chinês a fazê-lo. Dantes seria o Governo, agora é uma fundação privada.
“Dantes”? Quando?
Há uns 20, dez anos. Esse tipo de solidariedade de intervenção seria protagonizado pelo Governo, agora é por um agente privado, empresas como a Huawei estão a fazê-lo. O facto de os grandes atores privados chineses serem todos da área da tecnologia é a preparação para o mercado que vão ter no futuro. A China apoia esta estratégia comercial, uma espécie de marketing de grande escala feito por grandes marcas da área da tecnologia que vão ter de fazer uma grande conquista de mercado nos próximos tempos.
É uma aproximação de linguagens ou é mesmo uma visão de futuro?
Para essas empresas é uma aposta no futuro, estratégia comercial. Os chineses não querem ser líderes globais ainda. Eles querem defender o atual quadro multilateral até às suas últimas possibilidades porque sabem do desmonte do multilateralismo por parte dos EUA e de outros players que não lhes é favorável. Quem defende a Organização Mundial do Comércio é a China, não os EUA. Tal como tratados que limitam o armamento e dos quais os EUA querem retirar-se. A China sustenta o multilateralismo porque tira partido dele. Isto inclui as organizações de Bretton Woods [Conferência Monetária e Financeira da ONU de 1944 de onde saíram o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional]. Os chineses criaram os seus bancos paralelos que permitem fazer os investimentos que as instituições de Bretton Woods não fazem, como os grandes investimentos em infraestruturas, mas se se for ver as direções de todos esses bancos (China Development Bank, China Infrastucture Bank, New Development Bank) são pessoas formadas no Banco Mundial ou o FMI. Fizeram o mesmo que a Mercedes ou a Volkswagen, assimilaram conhecimento e tecnologia, neste caso financeira, e criaram os seus modelos paralelos. Já temos carros chineses que competem com as marcas alemãs e, no futuro, os carros chineses terão mais IA do que os carros alemães e vão, por isso, substituir os alemães, mas começou por ser uma imitação da tecnologia que vinha de outras partes. E é o mesmo que eles fazem na área financeira, e também na liderança mundial.
A China lidera nas áreas do futuro: inteligência artificial, nanotecnologia e biotecnologia. Logo o fará na tecnologia”
Como vê a relação da China com África? Muito do que descreve pode virar-se contra África, não?
Como escrevo no último capítulo do meu livro “África em Transformação”, África tem de acordar e ter mais capacidade de negociação com a China. O principal risco dos chineses em África é de reputação, não se podem permitir ser mal falados na África porque isso desmontaria toda a ideologia. Portanto, os países africanos têm de usar esse capital para negociarem melhor. O que está a acontecer é que a China está a conseguir ganhar influência num continente inteiro que tem 54 países. São 54 votos em várias organizações internacionais por um preço ridículo, de saldo. De todo o investimento chinês no mundo só 4% é que vão para África!
A pandemia parece ter suspendido a segurança e as migrações. Há populações reféns das fronteiras, paralisia dos fluxos migratórios e aumento de ataques na costa oriental de África, de que Moçambique é exemplo.
Nas migrações há uma confluência de fatores que fazem parte delas estar ligada a conflitos. Há incidências muito grandes das mudanças climáticas no Sahel, e eu consumo dizer que todos os países que têm pastoralismo estão em conflito — não a exploração industrial do gado, que é outra coisa. As sociedades pastoris, que vivem de uma forma de capitalização baseada no número de cabeças de gado, têm um sistema vulnerável que não se integra no mercado capitalista moderno . Por isso, acabam por engendrar conflitos e resistências que são férteis para quem queira vir acrescentar uma carga ideológica, seja jihadismo, nacionalismo, vontade de independência... Como África é o continente que tem mais pastoralismo em número de países, tem consequências enormes em toda a banda sudano-saariana. O aumento do stress do meio ambiente por causa das mudanças climáticas faz que seja difícil manter o gado e criam-se situações como o Darfur. O Sudão é um problema de pastoralistas. Depois acrescenta-se a dimensão religiosa, que é uma exploração dessa fragilidade, e o carácter transnacional do terrorismo. O Daesh foi altamente afetado na Síria e no Iraque e está a reaparecer em África. Ele encaixa nos sítios onde encontrar estas fragilidades. Cabo Delgado [Moçambique] é um exemplo extraordinário: a partir do momento em que se começa a falar nas maiores reservas de gás encontradas nos últimos 20 anos comparáveis às do Qatar, de imediato aparece o jihadismo. E onde estão no exílio os líderes dos vários grupos jihadistas mais importantes? Em Doha [capital do Qatar]! (risos) Isto não pode ser só uma coincidência, não se pode ser tão ingénuo...
O papel dos Estados vai sair reforçado desta crise? Decretar o estado de emergência permite uma atualização do poder. Penso em países cujo partido é o poder, como o MPLA, em Angola. Peço-lhe também um comentário à Guiné-Bissau.
Não tenho a mínima dúvida de que estamos a ter um regresso ao keynesianismo. Keynes fez parte dos criadores das instituições de Bretton Woods, o seu papel ao longo do tempo foi evoluindo. Depois veio a teoria do ajustamento estrutural à volta da qual se criou o Consenso de Washington, que resolvia problemas com a supressão da procura e onde era preciso criar um quadro macro-económico que não fosse inflacionário... acreditou-se nisso tudo e a machadada começou no ano 2000. A teoria das metas de inflação, começou aí a inflexão dos monetaristas e, digamos, o pôr em causa dos preceitos do Consenso de Washington. Com a crise de 2008 teve de se mudar o roteiro. As receitas de ajustamento estrutural que se aplicaram à Grécia foram estendidas a Portugal e a outros. Era um debate interno, as metas eram muito artificiais, daí que se criasse a ideia de uma austeridade fundamental para que os países pudessem recuperar quando, na realidade, tínhamos o exemplo do Japão e da Coreia, países com um grande problema de deflação, e que injetaram dinheiro na economia. Agora a pandemia dá a machadada final. As medidas macroeconómicas pouco ortodoxas como as taxas de juro negativas, agora já há venda de petróleo negativo por causa dos stocks, quer dizer, isto são coisas impensáveis! Chegamos a um patamar em que tudo é posto em causa. Um editorial do “Financial Times” de 3 de abril, da Bíblia dos que acreditam no modelo liberal, diz: “Pronto, este mundo acabou, agora vamos voltar ao racional.” E o racional diz que temos de taxar os ricos, tratar a saúde e a educação como capital humano e, portanto, temos de considerá-los investimento. A forma como avaliamos o risco tem de ser diferente, não há mais tabus... E o principal tabu que temos de ultrapassar é o papel do e porque o estado é necessário, o setor público é necessário. Do ponto de vista da atmosfera global, está tudo criado para que o estado volte em força.
Como se traduz isso em países africanos?
Em países africanos que já não têm estados fortes, mas estados autoritários, há uma diferença. Estado forte é aquele que tem capacidade de transformação estrutural, estado autoritário é aquele que resolve tudo com decisões um pouco brutais, que não transformam nem têm incidência na transformação da vida das pessoas. Vamos aos exemplos que deu, Angola e Guiné-Bissau. No caso de Angola temos um estado que se pautou pela distribuição de renda muito desigual e ela é a ausência total de transformação estrutural. Não diversificou a economia e vive da renda do petróleo e de algumas outras commodities. Enquanto os preços estiveram altos tinha uma ilusão de riqueza, quando os preços caem, fica exposto e mostra a sua fragilidade. Houve uma transição política, que é menos estruturante, porque a renda exige que o regime se adapte à nova realidade. Aqui entra a corrupção que importa, que é a fuga de capitais. Não tenho a mínima dúvida de que Angola sofreu muito com isso. Nunca é apropriado tomar medidas relacionadas com fuga de capitais num período recessivo porque o que acontece é que as pessoas só aceleram formas ilícitas de tirar o seu capital. E como o estado é frágil, há muitas possibilidades de o fazer. É isto que constitui a grande crise de Angola. Pode mudar-se o número de ministros, alterar o modo de lidar com as empresas estatais, tudo o que está no menu negociado com o FMI, que não se relança a economia coisa nenhuma! E com a covid-19 ficou mais óbvio.
O racional diz que temos de taxar os ricos, tratar a saúde e a educação como capital humano, temos de considerá-las investimento”
O que está a faltar então?
Um programa de verdadeira transformação estrutural. Ficar ali só com o pacote do FMI sem criatividade para acrescentar a sua própria transformação estrutural não dá em grande coisa. É onde Angola está. Ainda não vi apetite para a transformação estrutural, já que ela precisa de três ingredientes. Um alto nível de ambição, que é a capacidade de a liderança entender as mudanças mundiais e, no caso concreto de África, três em particular: a megatendência demográfica, a megatendência tecnológica, e a megatendência climática. O segundo ingrediente é a sofisticação. O país tem de se concentrar em poucas prioridades económicas, tem de conhecer as cadeias de valor nas áreas onde quer intervir, e estudar com precisão como se vai inserir nessas cadeias de valor para ter vantagem. Não vejo essa discussão em Angola. E o terceiro ingrediente é extrema coerência e coordenação dos agentes económicos. No fundo, é ter os ministérios todos alinhados a contribuírem para as tais prioridades definidas como essenciais.
E na Guiné-Bissau é semelhante?
Faz parte dos países com a estrutura estatal que corresponde a uma urbanização muito recente e que só ocupa uma franja mínima da sua economia. Gira tudo à volta daquela parte formal da economia, mas na realidade, a maior parte das pessoas e da economia são informais. Não passa pelo estado, não tem a ver com serviços do estado, prestações, mas também não paga impostos, vive em circuito paralelo. A política sofre com isso e é também informal. Os acordos informais são mais importantes que as instâncias jurídicas, legais e formais. As pessoas dizem uma coisa no Parlamento e à tarde já estão a fazer um negócio à volta do que decidiram no mercado informal da política.
Não é grave e condenável o apoio e reconhecimento internacional a esse tipo e postura?
Pelas mesmas razões que defendo que os africanos têm de ser tratados com mais consideração também me leva a ser extremamente crítico quando existem situações como essa do comportamento dos líderes africanos. No fundo, os atores internacionais estão cansados da Guiné-Bissau. Há querelas internas desde a independência. Desde 1980 que estamos em convulsões e não podemos passar a fatura è comunidade internacional. A Guiné-Bissau não é muito diferente de Angola, também faz distribuição de renda, mas com a diferença fundamental de que a renda é muito pequena e o nosso petróleo é a ajuda ao desenvolvimento. A mentalidade é a mesma, mas o pote que se distribui é a ajuda ao desenvolvimento.
EXPRESSO(Lisboa) – 19.06.2020
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