11/06/2020
Desde o início dos ataques no Norte de Cabo Delgado, diversas hipóteses explicativas do conflito salientaram a existência de tensões etnolinguísticas, particularmente entre povos muçulmanos da costa (mwanis e makuas) e a população makonde.
Contudo, os dados dos Censos de 2017 demonstram que os distritos costeiros da província, maioritariamente islâmicos, não apresentam diferenças muito significativas em termos de acesso a bem-estar, comparativamente com o planalto makonde, maioritariamente cristão.
Os resultados revelam que a pobreza em Cabo Delgado é generalizada e transversal a todos os grupos etnolinguísticos. Os indicadores que registam um maior índice de desigualdade relacionam-se com o acesso a recursos do Estado, em particular à pensão de antigo combatente. Os dados permitem identificar uma forte concentração dos beneficiários nos distritos de Mueda e de Muidumbe, mas também de Nangade, Mocímboa da Praia e Macomia, precisamente nas áreas de maior presença makonde.
As vozes no terreno são praticamente consensuais na associação do subsídio de antigo combatente a este grupo etnolinguístico. Este fenómeno contribuiu para a representação do Estado, por parte de populações mwanis e macuas, como um campo partidarizado e capturado por grupos etnolinguísticos específicos (makondes em aliança com elementos do Sul).
A introdução da pensão de antigo combatente reforçou tensões históricas entre grupos etnolinguísticos, sendo que a exclusão generalizada de mwanis (e de makuas), quer da história da libertação nacional, quer do acesso aos recursos do Estado, constitui um obstáculo a ultrapassar na construção da unidade nacional.
O sentimento de exclusão social daqui resultante foi agravado pela eleição de um Presidente da República makonde, processo que coincidiu com uma maior afirmação das forças do Estado no controlo dos recursos naturais, localmente interpretado como ao serviço de poderosos indivíduos makondes.
A corrupção e o nepotismo que se desenvolvem em torno do Estado, a consequente fragilidade dos serviços públicos, o sentimento de fragilidade democrática e de ausência de liberdade de expressão, ou as dificuldades de acesso à justiça, aumentam o sentimento de marginalização dos grupos mais pobres, podendo torná-los vulneráveis a aderir a movimentos com discursos fortemente identitários, populistas e messiânicos. Estas são constatações do Observatório do Meio Rural, em artigo de pesquisa denominado: Assimetrias no acesso ao Estado: Um terreno fértil de penetração do jihadismo islâmico?
Ao longo da análise, identificaram-se diversos discursos de construção de alteridade que destacam desigualdades de acesso a recursos de poder. A interpretação dessas desigualdades foi frequentemente realizada por referência a pressupostos étnicos, ainda que assumindo variações geográficas. No extremo Norte da província, nas áreas de implementação da indústria de gás, a tensão concentra-se, não só no acesso a empregos e rendimentos, mas também no acesso a benefícios e indemnizações resultantes dos grandes projectos.
No primeiro caso, os discursos revelam sentimentos de discriminação e de desvantagem para com cidadãos estrangeiros ou oriundos do Sul do país (vulgo maputecos), considerados como privilegiados no acesso aos melhores postos de trabalho em detrimentos das populações da província.
No segundo caso, e residente nas zonas de exploração do gás, a população mácué tende a ser representada como a grande beneficiária dos processos de reassentamento e de obtenção de compensações, particularmente os respectivos líderes comunitários, que se afirmam como gatekeepers entre o exterior e a população local.
Neste caso particular, os discursos de auto-exclusão são maioritariamente proferidos por macondes, por comparação com o grupo mácué, entendido como “originário” do distrito, com acesso aos maiores terrenos e possibilidade de os colocar no mercado.
Os resultados revelam que a pobreza em Cabo Delgado é generalizada e transversal a todos os grupos etnolinguísticos. Os indicadores que registam um maior índice de desigualdade relacionam-se com o acesso a recursos do Estado, em particular à pensão de antigo combatente. Os dados permitem identificar uma forte concentração dos beneficiários nos distritos de Mueda e de Muidumbe, mas também de Nangade, Mocímboa da Praia e Macomia, precisamente nas áreas de maior presença makonde.
As vozes no terreno são praticamente consensuais na associação do subsídio de antigo combatente a este grupo etnolinguístico. Este fenómeno contribuiu para a representação do Estado, por parte de populações mwanis e macuas, como um campo partidarizado e capturado por grupos etnolinguísticos específicos (makondes em aliança com elementos do Sul).
A introdução da pensão de antigo combatente reforçou tensões históricas entre grupos etnolinguísticos, sendo que a exclusão generalizada de mwanis (e de makuas), quer da história da libertação nacional, quer do acesso aos recursos do Estado, constitui um obstáculo a ultrapassar na construção da unidade nacional.
O sentimento de exclusão social daqui resultante foi agravado pela eleição de um Presidente da República makonde, processo que coincidiu com uma maior afirmação das forças do Estado no controlo dos recursos naturais, localmente interpretado como ao serviço de poderosos indivíduos makondes.
A corrupção e o nepotismo que se desenvolvem em torno do Estado, a consequente fragilidade dos serviços públicos, o sentimento de fragilidade democrática e de ausência de liberdade de expressão, ou as dificuldades de acesso à justiça, aumentam o sentimento de marginalização dos grupos mais pobres, podendo torná-los vulneráveis a aderir a movimentos com discursos fortemente identitários, populistas e messiânicos. Estas são constatações do Observatório do Meio Rural, em artigo de pesquisa denominado: Assimetrias no acesso ao Estado: Um terreno fértil de penetração do jihadismo islâmico?
Ao longo da análise, identificaram-se diversos discursos de construção de alteridade que destacam desigualdades de acesso a recursos de poder. A interpretação dessas desigualdades foi frequentemente realizada por referência a pressupostos étnicos, ainda que assumindo variações geográficas. No extremo Norte da província, nas áreas de implementação da indústria de gás, a tensão concentra-se, não só no acesso a empregos e rendimentos, mas também no acesso a benefícios e indemnizações resultantes dos grandes projectos.
No primeiro caso, os discursos revelam sentimentos de discriminação e de desvantagem para com cidadãos estrangeiros ou oriundos do Sul do país (vulgo maputecos), considerados como privilegiados no acesso aos melhores postos de trabalho em detrimentos das populações da província.
No segundo caso, e residente nas zonas de exploração do gás, a população mácué tende a ser representada como a grande beneficiária dos processos de reassentamento e de obtenção de compensações, particularmente os respectivos líderes comunitários, que se afirmam como gatekeepers entre o exterior e a população local.
Neste caso particular, os discursos de auto-exclusão são maioritariamente proferidos por macondes, por comparação com o grupo mácué, entendido como “originário” do distrito, com acesso aos maiores terrenos e possibilidade de os colocar no mercado.
No distrito de Mocímboa da Praia, e em algumas zonas de Macomia e de Palma, particularmente em locais de coexistência entre macondes, muanis e macuas, os discursos tendem a enfatizar o privilégio dos primeiros no acesso a subsídios do Estado.
Os tentáculos do poder Makonde
Os discursos de muanis, mas também de macuas, tendem a enfatizar o carácter politizado da atribuição de pensões de antigo combatente (assim como dos famigerados “sete milhões”), sobre concentrados entre elementos macondes, localmente confundidos com o partido Frelimo.
As desigualdades económicas confundem-se, nos discursos, não só com diferenças políticas, mas também com diferenças religiosas, opondo, de um lado, um grupo de macondes (cristãos e membros da Frelimo) e, do outro, populações muanis e macuas da costa, maioritariamente islâmicos e tendencialmente da oposição. Para além de enfatizarem as desigualdades entre macuas e macondes (particularmente no acesso a subsídios do Estado), em Montepuez, um distrito fortemente marcado pelas dinâmicas da mineração artesanal, os discursos tendem a salientar as desigualdades entre moçambicanos e estrangeiros (africanos e de outros continentes), no processo de controlo da exploração de rubis.
Os dados do censo de 2017 não mostram a existência de um grupo etnolinguístico que se destaque pelas suas condições socioeconómicas, pelo menos em termos de acesso a educação, habitação, saneamento, energia ou bens de consumo.
A excepção surge no acesso a recursos públicos, como pensões de antigo combatente, largamente concentradas nas áreas de maior população maconde, e no acesso a recursos naturais. Na verdade, um grupo relativamente restrito de famílias macondes, mostra uma grande capacidade de influência política (quer a nível central, quer a nível provincial) nos mais variados aspectos da realidade de Cabo Delgado, detendo um forte poder de influência até ao nível da localidade.
Nesta situação, tende a emergir discursos, segundo os quais, o acesso a recursos do Estado (pensões, subsídios e empregos, mas também recursos naturais), está étnica e politicamente condicionado, favorecendo grupos macondes, maioritariamente cristãos e simpatizantes do partido Frelimo.
Este fenómeno tende a ser gerador de sentimentos de inveja, de repulsa e de vitimização por parte de indivíduos oriundos de outros grupos linguísticos, sobretudo muanis, mas também macuas.
A chegada ao poder do presidente Filipe Nyusi coincidiu como uma nova postura governamental, mais incisiva na fiscalização e controlo dos recursos naturais, nomeadamente através da repressão de mineiros ilegais em Montepuez, da Operação Tronco ou da queima de marfim, em prejuízo de extensas redes locais, que operavam à margem da legalidade.
A acção brutal de forças do Estado na protecção de interesses económicos privados participados por proeminentes indivíduos macondes (nomeadamente a Montepuez Ruby Mining) foi localmente entendida, em diversos círculos, como uma oportunidade deste grupo etnolinguístico para se apropriar dos recursos do Estado para benefício próprio, em prejuízo dos restantes grupos na província.
Se os esforços de construção de uma moçambicanidade assentaram na ideia de resistência nacional e multissecular à exploração colonial, a realidade é que a desintegração económica do território (observável através da maior proximidade socioeconómica com a Tanzânia) e a desigualdade de acesso a recursos do Estado entre grupos etnolinguísticos contradizem um discurso inclusivo de resistência nacional anticolonial, agravando tensões sociais.
Tensőes Politico-Religiosas
Esta situação faz ressurgir tensões históricas entre populações do litoral e do interior, frequentemente confundidas como muanis e macondes, mas também como islâmicos e cristãos, e, por vezes, como Frelimo e Renamo.
As desigualdades de acesso a recursos públicos constituem um obstáculo à construção da unidade nacional. Por outro lado, a corrupção e o nepotismo, que se desenvolvem em torno do Estado, a consequente fragilidade dos serviços públicos, o sentimento de fragilidade democrática e de ausência de liberdade de expressão, ou as dificuldades de acesso à justiça, aumentam o sentimento de marginalização de grupos da costa, tornando-os, comparativamente, mais vulneráveis a aderir a movimentos com discursos fortemente identitários, populistas e messiânicos.
A realidade é que foi precisamente entre populações islâmicas da costa, em áreas de ressentimentos históricos, que movimentos radicais islâmicos encontraram as suas bases de recrutamento para fins violentos e radicais. Importa referir que a manipulação dessas contradições locais para fins políticos, em função dos interesses de grupos em confronto, não constitui uma prática recente.
O Estado colonial explorou habilmente as contradições históricas entre populações da costa e do planalto, tendo a questão religiosa alimentado contradições no próprio seio da Frelimo. No pós-independência, a Renamo explorou habilmente o descontentamento dos muçulmanos da costa em relação à postura profundamente laica da Frelimo, sendo que, ainda durante o governo de Samora Machel, o Conselho Islâmico de Moçambique não deixou de realizar uma aproximação estratégica à Frelimo.
Após o Acordo Geral de Paz, os diferentes partidos políticos mantiveram-se conscientes da importância de uma aliança com o Islão, como aliás com outras congregações religiosas. As tentativas de coaptação destes movimentos religiosos nunca assumiram um sentido unidireccional, tendo as várias congregações investido em alianças estratégicas com o poder (Macagno, 2006: 227; Morier-Genoud (2010).
Não obstante a presença de tensões e conflitualidades étnicas, importa evitar qualquer compreensão simplista da conflitualidade em Cabo Delgado assente na existência de um pólo de contradição etno-religioso: entre muanis e macondes ou entre islâmicos e cristãos.
Se é verdade que foi entre a população muani da costa que se encontrou uma importante base social de recrutamento, importa atender a outros aspectos que tornam aquela situação particularmente complexa:
Em primeiro lugar, longe de ter constituído um fenómeno de agressão a indivíduos de outros grupos etno-religiosos, os jovens insurgentes revoltam-se no seio de grupos islâmicos, portanto no âmbito de cisões e disputas internas de poder dentro do Islão.
Em segundo lugar, os relatos no terreno revelam a existência de um crescente número de jovens macondes entre as fileiras dos grupos rebeldes.
Em terceiro lugar, se é verdade que milhares de famílias macondes têm acesso privilegiado a uma série de fundos do Estado, os dados existentes mostram que esse grupo constitui uma minoria, existindo milhares macondes excluídos desse acesso.
Em Muidumbe, durante a campanha eleitoral para as eleições legislativas de 2019, constatou-se um maior envolvimento de jovens em caravanas de partidos da oposição, cenário que seria impensável há uns 10 anos atrás.
Estes elementos ilustram a existência de uma forte hierarquização social no seio deste grupo etnolinguístico.
PRETO&BRANCO – 11.06.2020
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