"E quem ficou com as terras que circundam os projectos de gás natural foi a elite frelimista, num investimento especulativo em terras em antecipação ao boom do gás."
EUREKA por Laurindos Macuácua
Cartas ao Presidente da República (36)
Bom dia, Presidente. Antes de tudo gostava de lhe dizer que não sou estudioso da situação de Cabo Delgado, mas já lá estive… inúmeras vezes.
Tanto em tempos de relativa calmia e agora que são ruins. Há, contudo, situações que saltam à vista: muito desemprego e jovens marginalizados e sem perspectiva nenhuma para o futuro. Eu não vou dizer que esta situação concorre para o surgimento de organizações extremistas violentas, mas há-de convir, Presidente, que cria um excelente celeiro para o recrutamento. E o que fizeram as empresas de mineração? Agravaram esses problemas. Nenhuma dessas empresas ou projectos beneficiaram as comunidades locais, apesar de terem criado expectativas económicas para essas populações. Desiludiram-nas.
O que aconteceu é que geraram violações dos direitos humanos, reforçaram as desigualdades étnico-religiosas e expropriaram as terras das comunidades locais.
Quando em 2009 foram descobertos rubis em Montepuez, a população que vivia nas redondezas foi “escorraçada”. E mesmo assim, contentava-se por que andava por ali a garimpar, até que o General Raimundo Pachinuapa e a sua empresa Mwiriti Limitada e a Gemfields, com sede em Londres, assinaram um acordo de joint venture de 25% -75% para formar a Montepuez Ruby Mining (MRM).
A MRM posteriormente ganhou direitos de mineração para uma concessão de 34.000 hectares. O que depois aconteceu não pode ser escondido nem esquecido. O general mandou os militares açoitarem qualquer indivíduo que se aproximasse da “sua” mina para garimpar. Os teimosos morreram às mãos dos militares naquela zona. Nenhum processo aqui no País foi aberto. Os pobres coitados morreram como cães.
A Procuradoria-Geral da República anunciou uma investigação, mas nunca foi concluída. Nenhuma medida séria foi tomada para buscar justiça para as vítimas ou para implementar políticas para lidar com o uso da força contra as comunidades afectadas pela indústria extractiva. Venceu o General!
Sabe me dizer o Presidente quantas pessoas foram retiradas das suas zonas de origem quando, em 2010, foram encontrados depósitos significativos de gás natural de alta qualidade na costa de Cabo Delgado?
Depois disto, o tal de reassentamento foi uma aberração: as comunidades não foram consultadas adequadamente, não tinham conhecimento sobre seus direitos e estavam muito intimidadas para expressar descontentamento por medo de retaliação.
E quem ficou com as terras que circundam os projectos de gás natural foi a elite frelimista, num investimento especulativo em terras em antecipação ao boom do gás.
Isto, certamente, alimentou o ressentimento entre os aldeões, que continuam a perder acesso à terra e meios de subsistência sustentáveis.
Ora, a zona costeira de Cabo Delgado tem sido tradicionalmente ocupada pelo povo muçulmano de língua Kimwani, que depende predominantemente do comércio, pesca e navegação marítima.
E foram esses muçulmanos que apoiaram a Frelimo durante a luta de libertação nacional. Mas nunca foram reconhecidos.
E viram os makonde (povo do Presidente e de muitos generais da Frelimo) assumir o protagonismo. Hoje, os makonde formam a elite local em Cabo Delgado, enquanto os falantes de kimwani estão entre os mais pobres da província e os mais afectados negativamente pelos projectos de gás natural.
Conclusão: pode ou não ser isto a razão da guerra que graça Cabo Delgado? Ninguém assiste tudo isto de forma indiferente.
Ou seja, Cabo Delgado já era um imenso barril de pólvora- aliás, como o é o País todo- só precisava de um pequeno rastilho.
DN – 06.11.2020
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