"Deus criou as pessoas para amarmos e as coisas para usarmos, porque então amamos as coisas e usamos as pessoas?"



segunda-feira, 16 de novembro de 2020

 

Decapitados de Cabo Delgado "têm que ter nome, têm que ter história"

O mundo está por fim a acordar para o drama das vítimas do terrorismo islamista, no que é acompanhado pelo governo. Mia Couto quer despertar as consciências dos compatriotas.

O governador de Cabo Delgado desmentiu na quarta-feira a existência de recentes massacres noticiados por meios de comunicação internacionais. Valige Tauabo reconheceu a existência de "incursões de terroristas", mas negou um massacre ocorrido num campo de futebol com decapitações de homens e crianças. "O massacre de 53 jovens ocorreu em abril, no dia 6", disse ao jornal O País, tendo esclarecido que o grupo terrorista agiu na sequência da recusa dos jovens em juntarem-se às suas fileiras.

Estas declarações surgem num momento em que as notícias causaram as mais fortes reações sobre o drama que as populações do norte de Moçambique sofrem há três anos, e acompanham o o que parece ser o fim de um longo silêncio das autoridades do país africano sobre o tema.

Agências de notícias como a AFP deram eco a meios locais, como a Pinnacle News, que deu conta de "ritos de iniciação masculina", no distrito de Muidumbe, em que foram decapitadas 20 pessoas, um número que foi depois atualizado para 51 com outros ataques na área. Certo é que nas últimas duas semanas tem havido uma série de ataques em várias aldeias, deixando um rasto de destruição e morte.

Nas últimas horas o escritor Mia Couto e a alta comissária dos Direitos Humanos, Michelle Bachelet, juntaram as suas vozes àquelas que têm condenado os ataques de um grupo terrorista que declarou fidelidade ao Estado Islâmico.

Na cerimónia de lançamento do seu mais recente livro, O Mapeador de Ausências, em Maputo, e na presença do presidente Filipe Nyusi, Mia Couto disse que as vítimas da violência islamista "não podem ser, simplesmente, objeto de notícia em que elas são números", conta O País. Comparando-as ao professor francês Samuel Paty, decapitado em resultado do ódio religioso, disse que aquelas pessoas "têm que ter nome, têm que ter história", de forma a mobilizarem a população e as autoridades para se proteger o direito à vida dos habitantes da região.

Já a ex-presidente do Chile e atual dirigente principal das Nações Unidas para os direitos humanos pronunciou-se na sexta-feira em comunicado. "A situação é desesperada tanto para os que estão presos em zonas afetadas por conflitos, com poucos meios de sobrevivência, como para os deslocados através da província e para além dela. Aqueles que permanecem ficaram privados das comodidades básicas e estão em risco de serem mortos, abusados sexualmente, raptados, ou recrutados à força por grupos armados. Aqueles que fogem podem morrer a tentar", descreve Bachelet.

A alta comissária, enquanto estende a mão ao governo moçambicano, também não o isenta de responsabilidades, ao lembrar que é "primordial" que as autoridades protejam os civis e deem condições para que as agências humanitárias possam prestar assistência. "Isto é particularmente crucial dado o risco de cólera e a propagação da pandemia de covid-19", lembra.

Além disso, elencou tudo o que de mal foi feito pelas autoridades: "violações dos direitos humanos cometidas pelas forças de segurança moçambicanas nos últimos anos, incluindo execuções extrajudiciais, maus-tratos, uso da força, detenções arbitrárias, incluindo de jornalistas, e restrições ilegais à liberdade de circulação".

"Defensores da tradição"

Uma campanha de insurreição de um obscuro grupo islamista tem provocado o caos na província moçambicana de Cabo Delgado nos últimos três anos, visando aldeias e cidades numa tentativa de estabelecer um califado islamista. Segundo o especialista em assuntos africanos Fernando Jorge Cardoso, os sinais foram dados quando jovens clérigos radicalizados em madraças de outros países regressaram para pregar a versão radical do islão, o que levou ao encerramento de mesquitas por parte das autoridades. O grupo, conhecido pela população como Shabaab, "juventude" em árabe, hoje intitula-se de Ansar al-Sunna, "defensores da tradição", e segue a visão extremista de um clérigo queniano, Aboud Rogo Muhammad, que estava baseado no sul da Tanzânia quando foi morto em 2012.

O grupo intensificou a sua ofensiva nos últimos meses, confiscando extensões de território perto de grandes projetos de gás natural, o que levou a que multinacionais tenham recorrido à contratação de grupos armados russos e sul-africanos. Segundo dados da organização não governamental Armed Conflict Location & Event Data (ACLED), de outubro de 2017 à primeira semana deste mês, em resultado de 678 incursões da milícia, composta na sua maioria por somalis, tanzanianos, quenianos e ugandeses. Desses ataques resultaram 2283 mortos, dos quais 1188 civis.

A campanha de terror levou também a um número de deslocados internos cada vez maior: mais de 420 mil, segundo um relatório de há um mês do Center for Public Integrity, uma ONG norte-americana de investigação jornalística.

Na semana em que o secretário-geral das Nações Unidas e a secretária-geral da Commonwealth se mostraram "chocados" com os acontecimentos, em que o presidente francês exigiu uma "resposta internacional" e o chefe da diplomacia da UE prometeu "redobrar os esforços", a Assembleia da República de Moçambique aprovou uma resolução a apoiar o reforço de meios das forças armadas no combate ao grupo. E o presidente Nyusi exigiu aos militares o "combate sem contemplações aos terroristas que assassinam populações de forma hedionda e pilham os seus bens em Cabo Delgado".

DN(Lisboa) – 15.11.2020

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