Fazer dos rapazes radicais e das raparigas escravas sexuais. Governo pede ajuda para combater o monstro
Desde há dois dias que a rede de comunicadores Pinnacle News está inacessível. Aparentemente, a banda disponível foi ultrapassada e a informação no ecrã sugere que se tente mais tarde. A última notícia que abriu a página com informação tão atualizada quanto possível sobre a atividade dos jiadistas falava da preparação de um grande ataque à capital da etnia maconde, a vila de Mueda, no interior da província de Cabo Delgado.
Quarta-feira, o primeiro-ministro, Carlos Agostinho do Rosário, revelou na Assembleia da República moçambicana (AR) que a violência armada dos terroristas naquela província do Norte do país já gerou meio milhão de deslocados.
Rebeldes no Norte e ataques armados da autoproclamada Junta Militar da Renamo no Centro fazem o pleno: Moçambique precisa de ajuda.
No mesmo dia, o Presidente Filipe Nyusi apelou “à sinergia” dos parceiros internacionais, chamando ao terrorismo o “cancro que se instala no corpo que é o mundo”. Ambas as partes alteram a estratégia. Depois de ataques esporádicos e da passagem a operações concertadas em simultâneo em locais diferentes, os extremistas anunciam atividade em grande escala, prometendo mais perigo para a região que é assolado por morte e destruição desde há três anos.
Pelo seu lado, o Governo abre a primeira brecha num silêncio e secretismo continuados que só tem desfavorecido a partilha de informação para se combaterem os invasores.
“Nenhum órgão moçambicano é autorizado a aproximar-se da zona de conflito, não há segurança nenhuma e é estratégia política”, diz ao Expresso um jornalista de Maputo, que pediu anonimato. “Falamos entre nós...”, acrescenta. Porém, só conseguem trabalhar a partir dos locais onde os deslocados acorrem, mais a sul em Cabo Delgado, em Pemba, Niassa, Nampula, Zambézia, Sofala e Ihambane. E o tema aí é a desolação humanitária de quem chega a porto seguro pelos seus meios.
Números oficiais atualizados esta quarta-feira confirmam que 37 mil pessoas foram obrigadas a abandonar as suas casas. Ou o que restou delas. “Nampula é o porto seguro para quem chega traumatizado em fuga dos distritos norte” de Cabo Delgado, diz ao Expresso o jornalista Ricardo Machava, via WhatsApp, a partir de Nampula, província vizinha de Cabo Delgado. Machava trabalha no grupo SOICO, ao qual pertencem o canal STV, o jornal “O País” e o “PaísOnline”.
Apoio do Estado chega a apenas 28 mil
A chamada cairia mais de uma dúzia de vezes ao longo da tarde, até que Machava conseguisse transmitir ao Expresso a informação que prometera com a premissa: “Não escrevo sobre o que não sei, podes citar-me à vontade.”
Até serem distribuídos pelos dez dos 23 distritos totais de Nampula onde são acolhidos, os deslocados chegam pelos seus próprios meios. Vêm como podem, a pé, chegam depois de dias sem comer e sem beber, a dormir ao relento no mato.
“Não há uma instituição que os recolha ou faça a evacuação das zonas de conflito.” “As pessoas estão entregues à sua sorte”, diz Ricardo Machava, que falou com elas em Meconte, cidade a 80 quilómetros de distância de Nampula, onde havia um centro de acolhimento transitório improvisado numa escola que fora encerrada para conter a pandemia.
O Governo ativou o Centro Nacional Operativo de Emergência (CENOE) que os moçambicanos melhor conhecem das calamidades, como as cheias. É ele que garante a assistência humanitária a 28 mil pessoas, em parceria com o Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas (PAM).
Recebem uma “cesta básica” mensal constituída por 2 quilos de feijão, 10 quilos de arroz e um litro de óleo por pessoa.
Além disso, na cidade de Nampula há famílias que acolhem deslocados e esses não recebem ajuda. “Porque estão com essas famílias”, em condições difíceis nas “casas muito precárias onde chegam a ser 50 ou 60”, descreve Machava, sublinhando o desafio que representa alimentar, dar condições para dormir e de saneamento a essas pessoas.
Nampula “tem uma boa comunidade maconde, que é a etnia dominante”, esclarece o jornalista, ajudando a entender a pertinência da declaração do primeiro-ministro na AR relativamente aos moçambicanos em busca de auxílio: “Não deve haver espaço para diferenças de cores partidárias, étnicas, rácicas ou religiosas.”
O governo provincial de Nampula criou o centro de reassentamento definitivo de Corrane na área de uma antiga produção de algodão, que foi dividida em lotes de 20 por 30 metros onde instalaram tendas que alojam cinco pessoas.
Há 230 tendas, “é fácil fazer as contas” ao número de pessoas para cujo estado psicológico o jornalista alerta: “Algumas destas pessoas assistiram à morte violenta dos seus familiares, os terroristas são brutais, além de matarem, despedaçam as vítimas”, diz Machava.
“Fiz uma reportagem com três pessoas que carregam consigo um trauma grande”, conta, acrescentando a importância que tem não poder enterrar os entes queridos. “Para nós, africanos, a morte faz parte da vida e não poder fazer os enterros é muito traumático. Há muitas pessoas que não conseguem dormir, muitas crianças que estão separadas das famílias e que não têm qualquer tipo de apoio. Só pode vir a ter consequências graves no futuro”, conclui o jornalista.
56% dos deslocados são crianças
Há mais mulheres do que homens a fugir das zonas de conflito. As estatísticas dizem que 56% são crianças, 25% jovens adultas e 19% de rapazes. Machava adianta que há mais homens do que mulheres a serem assassinados, há mais homens a ficarem para trás antes de abandonarem as terras. No início, conta Machava, as mulheres não eram raptadas como agora para serviços de limpeza e de escravatura sexual.
Os rapazes também são mais frequentemente raptados no presente para os territórios ocupados pelos insurgentes.
“Acho que só pode ser para que lhes seja incutido o radicalismo, de forma a que venham a ser a próxima geração de insurgentes a operar na sua própria terra”, conclui o jornalista, em consonância com o que é conhecido de outros palcos de atuação dos afiliados do autodenominado Estado Islâmico.
EXPRESSO(Lisboa) – 20.11.2020