18/04/2020
O que começou por ser um movimento de pequenos grupos de jovens locais, que foram escorraçados para o mato após terem tentado, sem sucesso, impor a sua lei islâmica, depois do regresso dos estudos numa madraça do Quénia, e que atacavam e pilhavam pequenas aldeias na província de Cabo Delgado, a mais pobre de Moçambique, no extremo norte do país, transformou-se numa ameaça terrorista de dimensões internacionais, com o autodenominado Estado Islâmico da Província da África Central (EIPAC) a reivindicar ataques cada vez mais coordenados em aglomerados urbanos importantes.
Segundo os Médicos sem Fronteiras, a violência já causou mais de 700 mortos desde o primeiro ataque, em outubro de 2017, e levou ao êxodo de mais de 200 mil pessoas, segundo D. Luiz Fernando Lisboa, bispo católico de Pemba, capital da província, uma das vozes que mais tem alertado para a situação. Chegou a escrever ao Papa, que referiu o sofrimento e a violência em Cabo Delgado na sua solitária bênção Urbi et Orbi esta Páscoa.
No final de março, o EIPAC atacou e ocupou por umas horas a vila de Mocímboa da Praia (30 mil habitantes) e a localidade de Quissanga, utilizando lanchas rápidas. Já em abril atacou a famosa ilha Quirimba (no centro do parque nacional homónimo) e, nos passados dias 7 e 8, o distrito de Muidumbe, no interior da província, tendo vandalizado a igreja de Nangololo, uma das mais antigas de Moçambique, com 96 anos, e cortado a N380, única via de alcatrão que liga Pemba a Palma, centro de exploração de gás natural, e à Tanzânia.
Nos seus ataques, este ramo regional do Daesh visou sobretudo esquadras de polícia e aquartelamentos das Forças Armadas. Vandalizou escolas, centros de saúde e igrejas, tendo pilhado agências bancárias, mas poupou a população civil. O Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados contabilizou 28 ataques nos primeiros dois meses de 2020.
A violência já causou mais de 700 mortos e 200 mil deslocados desde o primeiro ataque, em 2017
Conhecidos como al-Shabab (sem relação com o grupo radical somali do mesmo nome), os terroristas pertenciam a uma organização chamada Ansar al-Sunna, ou Ahlu al-Sunna, ou ainda Swahili Sunna, mas foram absorvidos pelo EIPAC, fundado em abril de 2019, que começou a reivindicar ataques em Moçambique e na República Democrática do Congo através da Amaq, agência noticiosa do Daesh.
Depois dos últimos ataques, o movimento publicou vídeos ameaçando estabelecer um califado no Norte de Moçambique, onde quer instaurar a sharia (lei islâmica). Durante a ocupação temporária de Mocímboa da Praia, um dos seus dirigentes reuniu a população e discursou em kimwani, idioma local: “Ocupámos esta povoação para mostrar que o Governo é injusto. Humilha os pobres para beneficiar os chefes. Quem sofre são as classes desfavorecidas. Gostem ou não, estamos aqui para defender o Islão. Queremos um governo islâmico, não um governo de ateus. Somos filhos desta terra. E no mato somos muitos.”
“Com o ataque a Mocímboa da Praia entramos numa nova fase da insurgência”, disse ao Expresso o antropólogo social Paulo Granjo, do Instituto de Ciências Sociais, que conhece muito bem o país. “Os militantes têm mais armas e mais reforços, eventualmente vindos do estrangeiro,” Explica que “até agora atacavam, sobretudo, comunidades isoladas, à procura de comida, mas decidiram confrontar as forças da autoridade e procuram controlo sobre o território”. Mal preparadas e sem treino, as forças da lei têm fugido sem oferecer resistência, o que levou o EIPAC a apoderar-se de mais armamento abandonado.
Recursos naturais abundam
Cabo Delgado tem vastas jazidas de gás natural e as suas minas produzem 80% dos rubis do mundo, mas a maioria da população vive na pobreza extrema. A multinacional francesa Total está a construir um complexo industrial de extração e liquefação de gás natural perto de Palma, 70 quilómetros a norte de Mocímboa, num projeto de cerca de €23 mil milhões, enquanto a americana Exxon Mobil investe num projeto offshore na região (bacia do Rovuma).
A generalidade dos observadores considera que Maputo tem revelado ineficiência e negligência. Perante a crónica crise nas Forças Armadas, minadas pelo fracassado acordo para reintegrar os guerrilheiros da Renamo (oposição), o Governo da Frelimo delegou na polícia o restabelecimento da ordem, enviando para a região unidades de intervenção rápida, que se mostraram ineficazes contra as táticas de guerrilha. Nos últimos dias, o comandante-geral da polícia de Moçambique, Bernardino Rafael, desmentiu que o EIPAC controle o território: “Não há zonas que se possa dizer que estão nas mãos de insurgentes, o que existe são zonas propensas a incursões dos malfeitores.” Reconheceu que “prevalece a alteração da ordem em Cabo Delgado” e que a maioria dos atacantes é de Moçambique, apesar de outros virem da Tanzânia. “Estão a ser enganados”, assegurou.
O Presidente da República, Filipe Nyusi, reconheceu que o país poderá precisar de ajuda internacional
Há quem defenda que Maputo deveria declarar o estado de guerra para mobilizar as Forças Armadas, inclusive Daviz Simango, presidente da Câmara da Beira e líder do Movimento Democrático de Moçambique, terceiro maior partido do país: “A população poderia receber ajuda humanitária e Moçambique poderia solicitar ajuda da comunidade internacional”, disse numa entrevista ao jornal “O País”. No mês passado, o Presidente da República, Filipe Nyusi, reconheceu que o país poderá precisar de ajuda e prometeu que o seu Governo “não descansará até restabelecer a estabilidade em Cabo Delgado”.
A braços com outra rebelião armada no Centro do país, onde um general dissidente da Renamo, Mariano Nhongo, tem desencadeado ataques contra civis e militares, Maputo terá contratado mercenários estrangeiros para lidar com o EIPAC. O analista Nuno Rogeiro, que tem seguido os acontecimentos em Cabo Delgado, sugeriu, na rede social Twitter, que haverá helicópteros (alguns armados) e três aviões a operar a partir de Pemba com mercenários sul-africanos e do Zimbabué, ao abrigo de um contrato com a polícia de Moçambique.
Segundo publicações especializadas em segurança privada, os mercenários trabalharão para a empresa sul-africana Dyck Advisory Group, propriedade de um antigo coronel das Forças Armadas do Zimbabué, Lionel Dyck, próximo do atual Presidente desse país, Emmerson Mnangagwa. Antes, a empresa de segurança russa Wagner terá trabalhado em Pemba, mas os moçambicanos não ficaram satisfeitos com os resultados.
EXPRESSO(Lisboa) - 18.04.2020
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