erça-feira, 25 de dezembro de 2018
ENCONTRO COM O PRESIDENTE SAMORA – 9.05.1984
Notas pessoais do Arcebispo de Nampula,
com a data de 11 de Maio de 1984,
sobre a entrevista que teve com o Presidente, no dia 9 do mesmo mês e ano. Num
tempo em que, para o Governo da Frelimo, a Renamo não passava de «bandidos
armados», D. Manuel Vieira Pinto falou
abertamente ao Presidente da guerra civil e fratricida e da urgência de
negociações políticas.Cf. D. Manuel
Vieira Pinto – Arcebispo de Nampula,
Cristianismo: política e mística.
Antologia, Introdução e notas de Anselmo Borges, Porto, 1992, Edições ASA.
1 - O telefone tocou. Era da
Presidência. Pediam para avisar o Bispo de Nampula da entrevista com o
Presidente. São 15 horas do dia 8 de Maio
de 1984. No dia seguinte estava previsto o encontro do Bispo com o Presidente.
Um encontro pedido há mais de dois anos. Várias tinham sido as tentativas para
o obter. Mas só a última tinha dado
resultado. A primeira, através do Professor Aquino de Bragança. A segunda,
através dum pedido escrito e entregue, com protocolo, no Governo da Província.
A terceira, através dum membro do partido em Outubro de 1983. A quarta, através do
telefone, pedindo ao Protocolo da Presidência da República uma possível
audiência com Sua Excelência, o Presidente. A quinta em 5 de Maio de 1984, através do Secretário de Estado da
Cultura.
Não sei as razões que motivaram o
silêncio da Presidência relativamente a estes meus pedidos insistentes.
Possivelmente nenhum destes pedidos terá chegado ao Presidente. Ou poderia
acontecer que o Presidente não tivesse disposição para me ouvir. Havia, de
facto, em alguns ambientes do partido, um certo nervosismo a meu respeito. É possível que também o Presidente estivesse nervoso
comigo.
As sucessivas homilias na Catedral
sobre a situação do povo, os abusos de poder e os crimes da guerra, vindos de
ambos os lados, tinham efectivamente irritado alguns dirigentes da Nação.
Houve mesmo, a nível da Província, uma certa tentativa de neutralizar as
homilias do Bispo. Assim me foi dito por alguém que sabia dum encontro
convocado para o efeito. É possível,
portanto, que o Presidente estivesse algum tanto irritado comigo. Isto mesmo me
foi dito por quem trabalhava perto dele. Mas,
apesar de tudo isso, a audiência estava concedida.
2 - A resposta ao meu último pedido demorou três
dias apenas.
A minha conversa com o Secretário de Estado da
Cultura tinha sido decisiva. Ele próprio me disse: "É urgente que fale ao Presidente. Estamos num topo e
as informações objectivas e completas nem sempre cá chegam. O Presidente sabe
da guerra em Nampula, mas não sabe certamente da gravidade dessa guerra e dos
perigos que ela representa para a credibilidade e aceitação do partido e do
Governo, como também não saberá inteiramente dos crimes que as forças de ambos
os lados estão cometendo contra o povo nem das práticas repressivas que certos
dirigentes estão a fazer ou a deixar que se façam. Estas situações desastrosas devem
ser comunicadas prontamente ao Presidente. Você deve encontrar-se com ele. Eu
próprio tratarei da audiência.
3 - Dia 9 de Maio.
Era o dia do meu embarque para Lisboa. Era também o dia previsto para a
audiência. Não saí de casa, esperando a chamada a todo o momento. Ao meio-dia,
telefonámos ao Protocolo da Presidência. Disseram-nos que a audiência estava
marcada para as quatro horas da tarde. Às cinco deveríamos estar no Aeroporto.
O Protocolo tranquilizou-nos, dizendo que assumia as formalidades do embarque e
que se comprometia a pôr-nos a tempo no avião de Lisboa.
4 - Entretanto, fui revendo as questões que deveria apresentar ao
Presidente. Tinha comigo uma carta onde expunha os principais problemas.
Escrevi-a em Nampula, com o fim de a fazer chegar ao Presidente, caso a
audiência continuasse sem resposta.
Os bispos a quem dei conhecimento
desta carta entenderam que o texto era demasiadamente duro e, por isso, não o
devia entregar sem uma explicação adequada. Eu, porém, estava convencido de que o deveria
dar a conhecer ao Presidente e mais ainda se não conseguisse a audiência
pedida. Quando fui para o Palácio da Ponta Vermelha, levei este texto comigo.
No final da audiência o Presidente pediu-mo. Entreguei-lho e ele guardou-o no
bolso do seu uniforme.
5 - São 16 horas em ponto. O Secretário
do Presidente recebe-nos e diz-nos que teremos de esperar uns momentos, uma vez que o
Presidente está ainda em reunião com o Vice-Ministro
da Defesa.
Começámos uma conversa informal e, a
um dado momento, o Secretário pediu-me que lhe explicasse por que razão não
havia relações diplomáticas entre a Santa Sé e a República Popular de Moçambique. Disse-lhe que o problema não estaria do lado da
Santa Sé mas da República Popular de Moçambique.
Certamente que a Santa Sé estaria aberta a um estatuto de relação semelhante
às que acontecem em todos os outros países, mesmo de orientação socialista,
como é o caso do Zimbabwe. Perguntou-me em seguida pelo
Delegado Apostólico no Maputo
e logo nos deixou para saber em que ponto estava a nossa audiência.
6 - Fiquei então a pensar nas
audiências que desde 1967 - ano da minha chegada a Moçambique
como Bispo - me tinham sido concedidas naquele Palácio ou noutros espaços
semelhantes.
Pensei nas audiências no tempo
colonial e nas audiências do tempo novo de Moçambique.
Lembrei a preocupação e o sofrimento que tais audiências tinham provocado em
mim. E perguntava-me pela razão desta nova audiência. Sabia que era um risco a
audiência pedida, sabia que as condições propostas por mim, para aceitar a
audiência, não seriam inteiramente cumpridas. Sabia que a minha conversa com o
Presidente, num momento tão crítico e tão problemático, seria largamente
explorada por uns e por outros. Mesmo
assim, estava ali, esperando tranquilo o momento da chegada.
É que dentro de
mim havia a mesma força de sempre, a força que em tempos da colónia me tinha
levado a enfrentar os Governadores Gerais de então. A força que me tinha levado
em Janeiro de 1976 a
pôr ao Presidente de Moçambique,
independente e soberano, as questões que mais afectam o Povo e a denunciar, já
nessa altura, os erros e os desvios dos novos dirigentes do país.
A força que me tinha levado a pedir
ao Presidente outras audiências, algumas bem difíceis e bem dolorosas. Uma,
após o 3º Congresso, em 1978, sobre a vergonha dos Campos de Reeducação e sobre
os detidos que nunca mais veriam a luz da liberdade moçambicana: os objectores
e dissidentes políticos e as testemunhas de Jeová. Outra, em 1979, após a minha
visita aos jovens, enviados para Cuba sem que aos pais fosse dada a menor
satisfação. Lembra-me que nessa audiência, os temas centrais foram os direitos
dos pais, o abuso do poder, manifestado claramente na maneira como tinham
mobilizado esses jovens e como os tinham enviado para Cuba ou para outras
Repúblicas da área socialista, e finalmente o real e perigoso desenraizamento
cultural, moral e social que os jovens em Cuba estavam a sofrer. Outra, em
1980, após o meu regresso da clínica para agradecer ao Presidente o interesse
mostrado pela minha saúde e para lhe falar do «mau discurso» contra os bispos
de Moçambique, feito em 1 de Maio de 1979, e das críticas incorrectas à Religião
e à Igreja, e bem assim das limitações indevidas que os missionários e as
comunidades estavam a sofrer.
A força que me tinha levado até ali
era a força que me tinha levado a falar quase sempre das mesmas questões: a
dignidade do povo moçambicano, a justiça, os direitos humanos, as liberdades
fundamentais, a discriminação por motivo religioso, ideológico e político, as
medidas burocráticas, os abusos do poder, as detenções arbitrárias, os campos
de reeducação, os presos sem culpa formada, a pena de morte, a edificação duma
sociedade solidária, o neocolonialismo cultural, político e económico, a
desintegração moral do Homem e da Nação moçambicana, as críticas incorrectas à
Igreja e à Religião, o relacionamento entre a Igreja e o Estado, as situações
degradantes do povo. Era a força que me obrigava desta vez a falar sobre a
guerra no país, sobre os crimes que destruíam e revoltavam o povo e sobre a
urgência dum acordo de paz com as forças em luta no seio da Nação.
A força que me tinha levado a pedir
todas essas audiências era a força do amor pelo povo por quem optei
sinceramente no momento em que assumi a pesada missão de ser Bispo de Nampula.
7 - São dezasseis horas e vinte. O
Secretário avisa-me que o Presidente está à espera.
Cumprimentámo-nos com a cordialidade
de sempre, tendo o Presidente exclamado: «Mas
há quanto tempo não nos vemos!» Ao que eu respondi: «Há mais de dois anos,
Presidente. Há mais de dois anos que espero uma resposta ao pedido de uma
audiência». E logo o Presidente retorquiu: «Já se perguntou se os canais de
informação funcionam?». «Já me perguntei e parece-me que de facto não funcionam
como seria preciso».
Sentámo-nos, tendo como vizinhos
mais próximos os coloridos irrequietos pavões que, segundo me informou o
Presidente, tinham sido oferecidos por Julius Nyerere. Connosco, estavam apenas
os dois secretários, respectivamente o secretário do Presidente e o meu. Cumpria-se assim uma das condições que tinha posto
ao solicitar aquela audiência: falar a sós, e tranquilamente, com o Presidente.
8 - Agradeci o ter-me recebido e
comecei por felicitar o Presidente pela visita a Portugal e pela coragem e
realismo que tornaram possível o acordo de não-agressão e de boa vizinhança com
a África do Sul.
O Presidente sorriu e logo comentou:
«Dizem que foi um acordo entre Deus e o Diabo». Ao que eu respondi: «Se foi um
acordo entre Deus e o Diabo, então eu direi que foi um acordo entre Deus e os
diabos porque parece que, no caso concreto, estão metidos muitos diabos».
«É exacto. Mas quero dizer-lhe que não fiz um acordo unicamente
com a África do Sul. Este acordo de Nkomati é um acordo com a África do Sul,
com Portugal, Espanha, França, Grã-Bretanha, Bélgica, Holanda, Suíça, República
Federal da Alemã, Itália. É um
acordo com o Ocidente. Entende-me?»
Lembrei, a propósito, a
responsabilidade de Portugal
e a boa vontade que a sua visita tinha acordado no povo
português.
Em seguida, passámos ao primeiro
ponto da agenda: o início da guerra em Nampula, Maio
de 1983, os distritos afectados, os sofrimentos do povo, as medidas políticas,
administrativas
e militares opressivas e criminosas, a desilusão, o distanciamento e a revolta
progressiva do povo, frente à Frelimo.
9 - Concretizando, expus ao
Presidente o avanço da guerra, com todo o cortejo de sofrimentos, de violências
e de crimes. A penetração da Resistência nos distritos mais significativos em
termos de produção e de estratégia, e informei-o, com inteira lealdade, das
medidas políticas, administrativas e militares que mais humilhavam as populações, criando
situações de opressão, de violência, de repressão e de morte e levando o povo a
distanciar-se cada vez mais da Frelimo, a ponto de muitos a considerarem o pior
inimigo.
10 - Lembrei, a propósito, as
medidas desastrosas em curso no país: a «Operação Produção», a imposição e
improvisação de «aldeias comunais», por motivos estratégicos, as deslocações
forçadas e as deportações, a coberto da «Operação Produção» ou do combate à
marginalidade, ao banditismo e à candonga, a situação desgraçada em que se encontravam
milhares de pessoas, vítimas da «Operação Produção», os castigos injustos e
humilhantes, as crueldades, as execuções sumárias, o alastramento do ódio, da
desconfiança, do medo, do espírito de vingança e as rupturas a nível das
famílias, das etnias, das populações e da própria Nação.
11 - Concluí a minha exposição
pedindo ao Presidente que fizesse mais um passo na conquista da paz em Moçambique. E este passo seria a reconciliação com o povo. Uma
reconciliação que, para ser sincera, teria de passar obrigatoriamente pelo
reconhecimento das injustiças, das violências e dos erros cometidos, pela
eliminação imediata das situações de sofrimentos imerecidos, dos castigos arbitrários e das medidas
burocráticas e desumanas, e teria de passar igualmente por uma política que
enfrentasse de facto as justas e legítimas aspirações do povo. Sem este reconhecimento,
a reconciliação do povo com os seus dirigentes e consigo próprio não seria mais
que uma palavra vazia. E sem esta reconciliação, a Frelimo não conseguiria
recuperar a «confiança popular« e sem a confiança popular a paz não seria possível nem teria
qualquer sucesso o esforço pelo desenvolvimento económico e social do país.
E concluí fazendo-lhe notar a nova
sensibilidade do povo relativamente à Frelimo. Disse-lhe que no princípio da
Revolução, quando era necessário fazer uma crítica à Frelimo, devido a qualquer
medida menos correcta ou menos justa, haveria que pensar muito bem a maneira de
o fazer; caso contrário, o povo perguntava: «mas você também despreza a nossa
independência?». Nesse tempo, o povo identificava a Frelimo com a independência
e como a independência é um bem indiscutível também a Frelimo o era. Por outro
lado, o povo distinguia bastante bem entre a Frelimo como tal e os homens de cabeça oportunista
e de coração estragado.
Hoje, se desejo fazer um elogio à
Frelimo, a propósito de qualquer medida verdadeiramente positiva, terei de
pensar muito bem a maneira de o fazer; caso contrário, o mesmo povo
pergunta-me: «afinal, você também quer a nossa desgraça?» O povo, hoje, não
quer ouvir falar da Frelimo e já não distingue entre a Frelimo como tal e os erros
cometidos por certos homens ou organismos da Frelimo.
12 - O Presidente ouviu com relativa
serenidade toda esta exposição. No seu rosto, magro e cansado, podia ver-se um
grande sofrimento. Perguntou-me se eu tinha a «cronologia» dos acontecimentos
narrados e se eu havia acompanhado os discursos que ele tinha feito no IV
Congresso e na última reunião do Comité Central. Com esta pergunta, certamente
que o Presidente pretendia dizer-me que as linhas programáticas determinadas pelo
Congresso e pelo Comité Central poderiam estar certas, mas a prática dessas
linhas continuava à mercê de analfabetos políticos, administrativos e militares.
Disse-lhe que, no momento presente,
o meu grande livro de leitura era o Povo no meio do qual procurava viver e
cujos sofrimentos e aspirações me esforçava por entender e assumir. Que esse
livro - o Povo real - era o mesmo que certamente o Presidente procurava ler e
meditar todos os dias.
13 - O Presidente passou então a
falar do Povo moçambicano, como povo em gestação, apesar do esforço destes
quase dez anos de independência e de revolução. «É difícil às muitas e diversas etnias de Moçambique
ultrapassar o tribalismo, o regionalismo, o individualismo e sentir-se um povo
do Rovuma ao Maputo. Isto favorece o
abuso do poder de uns sobre os outros, as medidas arbitrárias, as crueldades, o
espírito de vingança, de divisionismo, de luta pelo poder, de separatismo e de
guerra. Mas teremos de fazer tudo
para evitar uma guerra tribal ou uma guerra civil. Não quero de forma nenhuma
uma guerra tribal ou uma guerra civil. Ajude-me a evitar que tal aconteça».
14 - Atalhei, dizendo que guerra
tribal não havia certamente no país, mas guerra civil ... De facto, como chamar
a esta guerra que, no momento presente, é conduzida por moçambicanos contra
moçambicanos? Será que podemos continuar a dizer que esta guerra é apoiada,
treinada e mantida pela África do Sul? Não teremos de confessar que a guerra no
interior de Moçambique, e presente
já em todas as
Províncias, é uma guerra fratricida? Uma guerra entre os
filhos do mesmo Povo? Perguntei então: Acha, Presidente, que esta guerra, no
interior da nossa casa, vai extinguir-se por si mesma ou não será necessário um
novo acto de coragem, semelhante ao de Nkomati?».
15 - O Presidente reagiu fortemente
e disse-me num desabafo que bem deixava transparecer todo o drama da situação
que vive o país: -Não, não, não ... não me peça uma coisa dessas. Seria um
sacrilégio ...
Mas não sou eu propriamente quem, neste momento, lhe
pede este gesto. É o Povo quem lho pede. O Povo
com quem vivo e a quem tenho perguntado o que será necessário fazer para acabar
com esta guerra e para encontrarmos uma paz verdadeira. O nosso Povo,
Presidente, diz que já não pode aguentar mais a violência e a guerra. Que já
está cansado de sofrer o ódio, a vingança, o sangue, a morte e o luto.
O nosso Povo, de quem o Presidente é
responsável e a quem jurou servir até ao fim, pede-me que lhe faça a pergunta que lhe
fiz e que proponha como caminho para a
paz em Moçambique
- talvez único - o diálogo com a Resistência Nacional. Este é o pedido do povo:
«Que o Presidente faça um acordo com os homens da Resistência como fez com os
homens da África do Sul». Este é também o meu pedido. Sei que este caminho é
duro e difícil. Mas sei, igualmente,
que o Presidente dispõe de coragem e lucidez suficientes para avançar neste
sentido. Sei, além de tudo, que o Presidente quer, efectivamente, o bem do
povo e a paz no
país.
16 - O Presidente olhou-me, deixando
transparecer a luta que lhe ia no espírito e perguntou-me: «Com quem vou
falar?» Respondi: «eu não sei, Presidente. Não sou político nem tenho meios
políticos que me permitam saber quem são os homens responsáveis pela guerra que
sofremos. Mas o Presidente é
político, tem conselheiros políticos e dispõe de mecanismos políticos capazes.
Certamente que não será difícil descobrir com quem deve falar». «Mas não me obrigue a falar com os ex-pides» -
atalhou o Presidente. Tem razão - observei - mas qualquer encontro, neste caso,
irá exigir do Presidente um grande espírito de diálogo, de compreensão, de
concórdia e de paz. Irá exigir uma enorme força moral. Para já, penso que seria
bom distinguir, no discurso político e na política da paz, entre bandidos e
Resistência. A confusão entre bandidos e Resistência pode iludir a Frelimo acerca das situações
reais, e dar ao mesmo tempo à própria Resistência uma certa cobertura, na
medida em que os crimes, cometidos pelos homens da Resistência, possam ser
atribuídos pelo povo aos bandidos que de facto existem.
Por outro lado, a eventual simpatia
das populações pela Resistência sempre tentará desculpá-la, atribuindo aos
bandidos, ou então à Frelimo, os crimes que ela efectivamente comete. Por tudo
isto, creio que será um bom serviço à paz, e à própria Frelimo, distinguir
entre bandidos - cuja origem se encontra sobretudo nas situações de confusão em
que vivemos - e a
Resistência como tal.
17 - Falámos em seguida dos crimes
que as diversas forças em presença vêm cometendo, vexando e destruindo
sobretudo as populações indefesas.
Narrei alguns desses crimes e
perguntei se a política de vingança e de represália indiscriminada seguida
pelas tropas da Frelimo conduzia à paz ou à exasperação das populações.
Perguntei ainda a quem servia tal política, dizendo que ao povo não servia e à
Frelimo tão-pouco. De facto, o povo sente-se cada vez mais revoltado e a Frelimo é cada vez mais
temida e rejeitada.
18 - O Presidente, visivelmente
indignado, respondeu afirmando que «tal estratégia não se pode aceitar de modo
nenhum. As populações são sempre inocentes, mesmo que tenham dado guarida ou
comida aos bandidos. Esta estratégia é consequência da desordem, da
indisciplina e da má preparação, não dos soldados, mas dos oficiais. Não há
soldados maus, há maus oficiais».
Mas o Povo não distingue entre soldados e oficiais -
observei. As populações vêem os desmandos das forças da Frelimo, sentem na
própria carne as crueldades, os crimes, as imoralidades e as violências que
elas cometem e perguntam, no caso concreto, quem é, de facto, inimigo da
República Popular de Moçambique,
quem ataca, humilha e destrói o Povo moçambicano. Contei então alguns dos
crimes cometidos: execuções sumárias, algumas delas com requintes de
crueldade, maus tratos, destruição de casas e haveres, roubos, violação de
mulheres, espancamentos, proibição de enterrar os executados, deixando-os à
mercê das feras e das aves de rapina.
O Presidente reagiu fortemente
afirmando: «Mas as Forças Populares
não podem fazer isso. Não podem, não podem». E depois, num tom mais baixo,
acrescentou: «Não será que o inimigo já se infiltrou até às casernas?» Voltou
de novo a falar do perigo de tribalismo e do racismo, do perigo duma guerra tribal
ou civil e pediu, mais uma vez, que o ajudássemos na consecução da paz,
dizendo-me que faria, dentro em breve, uma visita a Nampula para se inteirar in
loco dos problemas e das situações.
19 - Perguntei-lhe se podia dar-lhe
uns conselhos, a propósito dessa próxima visita a Nampula.
Disse-lhe então que o mais
importante da visita seria a recuperação da confiança popular na Frelimo e no
Governo. E esta só viria da livre discussão dos problemas e da correcção
imediata dos desvios em aberto, praticados pelos dirigentes políticos e pelos
dirigentes militares. Para isso, era urgente que o Presidente se encontrasse
com as populações vítimas das violências e da repressão e que ouvisse delas o
que mais conviria fazer. O Presidente agradeceu, dizendo que tudo faria para
visitar as populações mais afectadas e humilhadas pela guerra.
20 - Já no final, o Presidente
voltou a falar da importância do Povo como conteúdo vivo da República Popular
de Moçambique. "Se não
defendermos o Povo, não defendemos a realidade mais íntima e mais decisiva
desta República Popular de Moçambique.
Se destruímos o Povo, destruímos a República Popular de Moçambique.
É que a nossa República é popular. Isto quer dizer
que, sem Povo, a nossa República não existe».
21 - Por último, pediu-me a carta
que eu lhe tinha dirigido, expondo as questões que havíamos tratado.
Entreguei-lha, não deixando contudo de afirmar que a leitura dessa carta iria levantar, outra
vez, a questão dum novo Nkomati com os homens armados da Resistência Nacional.
22 - Eram dezassete e quarenta e
cinco quando terminámos. O Presidente agradeceu todo o apoio que lhe havia
prestado, no esforço que se impunha pela paz em Moçambique.
Agradeci-lhe também, lembrando que
as questões, de sua natureza difíceis e duras, mas tão clara e abertamente discutidas,
eram ditadas pela opção que desde há muito havia feito pelo Povo, e pela
confiança que depositava no Presidente da Frelimo e da República Popular de Moçambique. O próprio pedido de audiência, que há
tanto tempo eu vinha fazendo, tinha por finalidade o bem do Povo e não qualquer
interesse de carácter pessoal.
Levantámo-nos e fomos caminhando até
ao portão de armas. Ali
nos despedimos,
prometendo-me o Presidente que, nesta linha da paz, alguma coisa de novo eu
haveria de ver quando voltasse da Europa.
Fomos dali directamente ao
Aeroporto. O avião esperava-nos. Eram dezanove e trinta quando descolámos rumo
a Lisboa.
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