"Deus criou as pessoas para amarmos e as coisas para usarmos, porque então amamos as coisas e usamos as pessoas?"



segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Sobre a queda do Governo do Malí e o que se sabe [Elementos de Autocrítica]

 

Por ten-coronel Manuel Bernardo Gondola

Hoje, vou comentar um pouco sobre que país é esse o Malí, quais são as questões e o que é nós sabemos até hoje. Vou avisando, que eu vos escrevo domingo dia [30] de Agosto pela tarde, doze [12] dias após o derrube do Governo maliano. Portanto, qualquer previsão, qualquer opinião definitiva pode ser muito perigosa, contudo o que eu vou fazer aqui é, traçar sobre como se chegou até ao golpe de Estado no Malí e não o que vai acontecer a seguir ao golpe de Estado.

Malí, que país é esse; quais são as questões e onde se situa.

Malí fica na África ocidental, numa faixa chamada ou uma área chamada Sahel. Sahel em árabe, quer dizer; margem, limite, que é justamente o limite entre o deserto do Sahara e a África Subsariana, e essa é uma região extremamente rica em termos culturais, e a riqueza cultural às vezes gera choques culturais. Esse é o primeiro ponto para nós discutirmos. O que acontece aqui, os países do Sahel estão entre os países mais pobres do Continente africano, também são os mais violentos, muitas vezes essa violência é incitada por essa questão da pobreza.

O Sahel é uma região de contacto entre culturas é, uma região em que todas as fronteiras políticas são artificiais, ou seja, são herança do colonialismo europeu, basicamente nesta região francófona [francesa]. O francês ironicamente às vezes é a única língua falada por todas as pessoas no país, no sentido de ser a língua franca, a língua universal, porque são tantos grupos, muitas vezes eles não se entendem cada um no seu idioma. O francês é o idioma da África ocidental, nesse aspecto muitas vezes dentro de cada país é único, que tem uma possibilidade maior de ser um a todos.

Logo, quanto mais o país for ao mesmo tempo; pobre, multicultural e multiétnico com fronteiras artificiais, maior é a possibilidade do país ser instável e no caso do Malí, isso se nota com clareza. Existe no Malí violência interétnica, existe no Malí choques entre extremistas religiosos e a população mais moderada. Dentro do próprio islamismo é um ponto importante isso, já está mencionado em vários Documentos, muitas vezes a primeira e a maior vítima do extremista muçulmano é o próprio muçulmano ou o moderado. O Malí passa exactamente por isso.

Malí passa, também por movimento separatista e tem aí uma questão étnica envolvida. Repare! Existe uma região ao Norte do país chamada Azawad, onde há um movimento de origem árabe tuwaregue, que são populações mais ligadas ao deserto e ao Norte do Continente e que são contra desde 20[12] ao Governo de BamaKó [capital], que é um Governo ligado as etnias negras do Sul. Veja, que tudo é no plural.

O Governo não é de uma única etnia, o país não tem uma única etnia, tem inclusive uma diferença maior, por consequência das migrações trans-saharianas, uma das grandes rotas do comércio por meio do Sahara, passava pelo que hoje é Malí, pela cidade de Tubugto, que já foi importantíssima no passado, tem lá uma Biblioteca islâmica famosíssima.

Ou seja, há uma mescla no Mali entre os tuwaregue, que são parte das famílias de grupos e etnias, que habitam o deserto. Então, ali nós temos tuwaregue, um pouco árabes, berberes, e ao Sul as populações mais vinculadas aos grupos negros, tudo isso, está explicado na História de África. Lembrando, que Azawad é uma região que busca o separatismo já há algum tempo houve várias crises ao longo da década naquela região.

Segundo ponto. Essa é uma região em que a pobreza, a fragilidade do Estado, o Estado entendida aqui como país, Instituições, ou seja, a fragilidade dos poderes públicos favorece a violência, e a violência religiosa desde os grupos ligados ao «Estado Islâmico» e até a grupos ligados a «al-qaeda».Quer dizer, existe uma grande área de actuação aqui de um braço da «al-qaeda», chamado «al-qaeda do Magrebe islâmico», Magrebe sendo a África ocidental. E márgreb em árabe, quer dizer, tanto Oeste no sentido geográfico, quanto a direcção do sol poente. Então, falasse do Magrebe como; Marrocos, Argélia, também essa porção.

Certamente, essa violência religiosa está associada a [lógica] do extremismo, e ela agrava-se nesse quadro de instabilidade política, de batota eleitoral que, também tem muito no Malí, e isso já foi demonstrado/documentado com alguns dados mais recentes e para agravar o quadro/situação, desde a queda do Governo da Líbia do Coronel Muammar Kaddafi em 20[11] e a guerra civil em que a Líbia está ainda hoje, isso criou, ou seja, esses dois [2] factores juntos criaram uma rota de tráfico de armas.

De facto, muitas armas saíram da Líbia para os países vizinhos atravessando o deserto do Sahara, que é uma região quase que sem dono. O Sahara pertence a certos países no mapa, mas ninguém está lá patrulhando; logo a possibilidade de obtenção de armas, separatismo, questões interétnicas, questões de extremismo religioso e por último interesses externos.

Repare! O Malí é vizinho do Níger, vizinho da Argélia, que são três [3] países altamente essenciais para a França. E porquê é que esses países são essências para França? Porque a França tem ai muitos investimentos importantes em energia. Argélia, por exemplo é donde vem boa parte do Gaz francês, e da fronteira com Malí, com o Níger, do Níger, também vem o Urânio que alimenta as osinas nucleares francesas e o poder nuclear francês.

Lembrando, que a França é um dos países nucleares, e é um país que fez a opção muito pela energia nuclear tem havido, também investimentos noutras áreas mas, mais da metade da energia francesa aproximadamente [75%] da energia francesa, na verdade é nuclear e o Urânio vem de minas nesta região, existe uma Empresa francesa chamada Areva, que opera na região.

Repare! Que a presença do extremismo, a presença do separatismo, e de Estados fracos pode interferir directamente na dinâmica energética da França, além disso a Franca é um dos pilares da União Europeia [EU]. Por isso, a França tem tanto interesse naquela região e esse cinturão de pobreza, que infelizmente atinge ao Sahel, onde há muitos grupos extremistas actuando preocupa de maneira geral as potenciais globais [ocidentais], mais uma vez ai é uma região de influência francesa, mas também

há acção de Forças Especiais Americanas. Ou seja, são pequenos detalhes, que vamos juntando e que vão compondo o quadro.

Lembrando, não faz muito tempo, um grupo de soldados de Forças Especiais Americanas, caiu numa emboscada nessa área, e isso gerou bastante polémica, porque havia uma espécie de terceirização. Os soldados eram do Exército Americano, mas quem estava dando apoio eram grupos terceirizados. Diz-se, que houve falha de comunicação e muitos soldados americanos foram mortos nessa emboscada.

Do mesmo modo, tropas Especiais francesas estão em actuação nessa área faz muito tempo. Muitas vezes nós não pensamos na França como um poder interventor do tipo dos Estados Unidos. A França tem um perfil mais discreto, mas ela interfere muito no nosso Continente. Então, veja que a crise do Malí traz tudo isso.

O Presidente Kheitá do Malí, foi derrubado no dia [18] de Agosto corrente; a crise actual em tese se deu; o estopim se deu por uma questão de salários dos militares. Quer dizer, haveria um problema salarial envolvido nessa questão. Mas…, isso é um estopim. Houve suspeita de batota eleitoral, houve renúncia do Primeiro-ministro no ano passado, sequestro de opositores, coronavírus, a incapacidade do Governo de lidar com separatistas, com choques interétnicos, com os extremistas, todo isso, se juntou para, que o Presidente Kheitá tenha sido derrubado por uma «Junta Militar», que prometeu e garantiu, que não quer ficar no poder. Um Coronel do Exército maliano já deu uma entrevista, dizendo não essa a intenção dos militares. A intenção é organizar eleições e fazer uma transição pacífica. Mas…, assusta nós sabemos infelizmente, que uma vez que, o poder é derrubado de forma não Institucionais, derrubado de qualquer forma, fica aberta a porta para outras violações [derrubes].

Pode haver uma transição pacífica sim. O próprio Presidente renunciou sem nenhum banho de sangue, não foi um golpe violento, pode haver uma continuidade desse processo de forma pacífica. A oposição foi para rua, e o povo maravilhoso do Malí comemorou a queda do Governo, até onde se sabe.

França e Níger pediram uma Reunião de emergência do Conselho de Segurança da ONU, que já ocorreu com o cenário, que nós já esperávamos. Mas, é interessante saber tudo o que envolve o Malí como essa região fica fora do radar da grande mídia, mas que é extremamente importante para geopolítica e as relações locais e o contexto.

De resto, o Malí vive o seu segundo golpe de Estado em oito [8] anos e a região onde o Malí se situa é marcada por golpes militares.

Manuel Bernardo Gondola

Em Pemba [Cabo Delgado], aos 30 de Agosto 20[20]

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