Tudo Pode Mudar
Por NELSON MODA
A tragédia de Beirute, capital política e económica do Líbano, coloca à ribalta a memória da guerra de 1975 a 1992. Como em qualquer outro país, incluindo Moçambique, após uma dolorosa experiência da guerra, ouvirem-se disparos ou explosivos de qualquer que seja a origem coloca a memória activa e cria pânico. Aquilo que os libaneses viveram e vivem após a explosão é mais do que um pânico. Tem a dimensão duma tragédia. Dentre várias razões que se têm avançado de diversos quadrantes do mundo, por analistas e não só, o denominador comum é a longa prevalência de material de alta capacidade explosiva que tenha sido deixado sem um rigoroso controlo de segurança.
É justo procurar as razões e os responsáveis pelo armazenamento do nitrato de amónio no porto de Beirute. Mais justo ainda é a solidariedade que chega para resgate, tratamento médico e conforto por todos os quadrantes do mundo, e de todas as crenças, incluindo os menos prováveis do Golfo, tendo em conta a história entre estes países.
E o papel dos internautas em Moçambique seria de reflectir de modo global e não local, rompendo assim a polémica sobre o porto da Beira como o possível destino das 2.750 toneladas do nitrato de amónio, informação até agora não confirmada pela Cornelder de Moçambique, empresa gestora do porto da Beira, segundo o “Diário de Moçambique” de 6 de Agosto. Enquanto quem de direito busca apurar a história, é inútil empenhar-se em polémica e sobre factos não confirmados, em detrimento de ajuizar solidariedade para quem sofre neste momento.
Após o ciclone tropical Idai que destruiu a cidade da Beira, durante o período de emergência, Beira passou a reconhecer melhor o valor da solidariedade para quem sofre. Apesar de ainda termos as feridas do Idai abertas, a tragédia de Beirute e o sofrimento que o povo libanês vive nestes dias não nos deixam indiferentes, estamos com eles nos nossos pensamentos, apesar da distância geográfica. Através dos media, olhando nas imagens dos feridos, em particular das crianças, juntamo-nos à dor deles.
Líbano é um país que vinha vivendo uma liberdade ainda por crescer. Trata-se de um país na mira das grandes potências do Médio Oriente e que na busca da sua liberdade, sobretudo económica, impulsionada pelo maior porto do país, vive há bastante tempo em constante ameaça. Com uma economia frágil, típica de um país devastado pela guerra civil, instituições bancárias em crise, diversidade cultural e religiosa alta, mas sempre suspeitando uma da outra, coloca-se a hipótese da ausência duma responsabilidade colectiva na mais antiga classe política interna.
Outra hipótese recai nos braços armados ainda prevalecentes no país. Todavia, resiste na coexistência multicolor e robustece-se na convivência da sua rica diversidade religiosa entre muçulmanos sunitas e xiitas, cristãos católicos e protestantes, facto que impressionou João Paulo II em Outubro de 1997, aquando da sua visita àquele país. Tal coexistência – como dizia João Paulo II - “é uma mensagem”, o Líbano demonstrava ao mundo que era possível a coabitação entre religiões, culturas e povos diversos.
Wojtyla defendeu na ocasião a soberania de Líbano, numa altura em que a Síria tinha cerca de 35 mil soldados no território e havia uma ocupação forçada de Israel na zona sul, tornando a guerra feroz e com elevado peso para os cristãos. Hoje, com Beirute em cinzas e soterrada torna-se necessária uma solidariedade robusta, capaz de reatar os esforços de democracia em curso e garantir a manutenção do território como ponto de equilíbrio do Médio Oriente.
Com a explosão do dia 4 de Agosto corrente, apenas dois dias antes da passagem dos 75 anos da dolorosa tragédia em Hiroshima em 1945, estima-se que as vítimas humanas estejam acima de 150, mais de 300 mil pessoas sem abrigo, as infra-estruturas reconstruídas após a guerra que terminou em 1992 desmoronaram devido aos estrondos e incêndio causado.
E bem próximo do porto de Beirute encontrava-se um histórico local onde fora erguido o pódio usado durante a celebração da missa pelo Papa Wojtyla que não escapou à devastação. Após a guerra civil restabeleceram-se laços de esperança bastante fortes, com cooperação internacional a favor da reconstrução e da defesa da soberania do país, com destaque para a Itália e França.
Talvez mesmo por esta tradicional cooperação com a França, Emmanuel Macron, o Presidente francês, foi o primeiro Chefe de Estado no mundo inteiro a manifestar a sua solidariedade e do povo francês de forma presente, tendo-se deslocado para os escombros de Beirute. Não há dúvidas que França e Itália são os dois países que desempenharão um papel de influência na região, criando aliados dentro da União Europeia e não só, para a reconstrução do país.
Neste momento, para o Líbano serve a solidariedade. Precisa-se reconstruir tudo. As ajudas humanitárias começaram a chegar, todavia, há muito que deve ser feito, sobretudo acautelar possível onda de violência por parte de algumas facções internas que acusam o Governo do dia de inoperante. E assegurar que as ajudas humanitárias sejam para responder à emergência vivida pelas vítimas, em primeira fase, e de seguida elaborar linhas de apoio internacional para a reconstrução, evitando-se a estratégia do “touch and go”.
DIÁRIO DE MOÇAMBIQUE – 10.08.2020
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