"Deus criou as pessoas para amarmos e as coisas para usarmos, porque então amamos as coisas e usamos as pessoas?"



terça-feira, 11 de agosto de 2020

Líbano: se Beirute fosse Beira

 

Tudo Pode Mudar

Por NELSON MODA

A tragédia de Beirute, capital política e económica do Lí­bano, coloca à ribalta a me­mória da guerra de 1975 a 1992. Como em qualquer outro país, in­cluindo Moçambique, após uma dolorosa experiência da guerra, ouvirem-se disparos ou explosi­vos de qualquer que seja a ori­gem coloca a memória activa e cria pânico. Aquilo que os libane­ses viveram e vivem após a ex­plosão é mais do que um pânico. Tem a dimensão duma tragédia. Dentre várias razões que se têm avançado de diversos quadran­tes do mundo, por analistas e não só, o denominador comum é a longa prevalência de material de alta capacidade explosiva que tenha sido deixado sem um rigo­roso controlo de segurança.

É justo procurar as razões e os responsáveis pelo armazena­mento do nitrato de amónio no porto de Beirute. Mais justo ain­da é a solidariedade que chega para resgate, tratamento médi­co e conforto por todos os qua­drantes do mundo, e de todas as crenças, incluindo os menos pro­váveis do Golfo, tendo em conta a história entre estes países.

E o papel dos internautas em Moçambique seria de reflectir de modo global e não local, rom­pendo assim a polémica sobre o porto da Beira como o possível destino das 2.750 toneladas do nitrato de amónio, informação até agora não confirmada pela Cor­nelder de Moçambique, empresa gestora do porto da Beira, segun­do o “Diário de Moçambique” de 6 de Agosto. Enquanto quem de direito busca apurar a história, é inútil empenhar-se em polémica e sobre factos não confirmados, em detrimento de ajuizar solidariedade para quem sofre neste momento.

Após o ciclone tropical Idai que destruiu a cidade da Beira, duran­te o período de emergência, Bei­ra passou a reconhecer melhor o valor da solidariedade para quem sofre. Apesar de ainda termos as feridas do Idai abertas, a tragédia de Beirute e o sofrimento que o povo libanês vive nestes dias não nos deixam indiferentes, estamos com eles nos nossos pensamen­tos, apesar da distância geográfica. Através dos media, olhando nas imagens dos feridos, em particular das crianças, juntamo-nos à dor deles.

Líbano é um país que vinha vivendo uma liberdade ainda por crescer. Trata-se de um país na mira das grandes potências do Médio Oriente e que na busca da sua liberdade, sobretudo económi­ca, impulsionada pelo maior porto do país, vive há bastante tempo em constante ameaça. Com uma economia frágil, típica de um país devastado pela guerra civil, insti­tuições bancárias em crise, diversi­dade cultural e religiosa alta, mas sempre suspeitando uma da outra, coloca-se a hipótese da ausência duma responsabilidade colectiva na mais antiga classe política in­terna.

Outra hipótese recai nos braços armados ainda prevalecentes no país. Todavia, resiste na coexis­tência multicolor e robustece-se na convivência da sua rica diver­sidade religiosa entre muçulmanos sunitas e xiitas, cristãos católicos e protestantes, facto que impressio­nou João Paulo II em Outubro de 1997, aquando da sua visita àquele país. Tal coexistência – como dizia João Paulo II - “é uma mensa­gem”, o Líbano demonstrava ao mundo que era possível a coabita­ção entre religiões, culturas e po­vos diversos.

Wojtyla defendeu na ocasião a soberania de Líbano, numa altura em que a Síria tinha cerca de 35 mil soldados no território e havia uma ocupação forçada de Israel na zona sul, tornando a guerra feroz e com elevado peso para os cristãos. Hoje, com Beirute em cinzas e so­terrada torna-se necessária uma solidariedade robusta, capaz de reatar os esforços de democracia em curso e garantir a manutenção do território como ponto de equilí­brio do Médio Oriente.

Com a explosão do dia 4 de Agosto corrente, apenas dois dias antes da passagem dos 75 anos da dolorosa tragédia em Hiroshi­ma em 1945, estima-se que as ví­timas humanas estejam acima de 150, mais de 300 mil pessoas sem abrigo, as infra-estruturas recons­truídas após a guerra que terminou em 1992 desmoronaram devido aos estrondos e incêndio causado.

E bem próximo do porto de Bei­rute encontrava-se um histórico lo­cal onde fora erguido o pódio usa­do durante a celebração da missa pelo Papa Wojtyla que não escapou à devastação. Após a guerra civil restabeleceram-se laços de esperança bastante fortes, com cooperação interna­cional a favor da reconstrução e da defesa da soberania do país, com destaque para a Itália e França.

Talvez mesmo por esta tra­dicional cooperação com a França, Emmanuel Macron, o Presidente francês, foi o primei­ro Chefe de Estado no mundo inteiro a manifestar a sua soli­dariedade e do povo francês de forma presente, tendo-se deslocado para os escombros de Beirute. Não há dúvidas que França e Itália são os dois paí­ses que desempenharão um papel de influência na região, criando aliados dentro da União Europeia e não só, para a re­construção do país.

Neste momento, para o Líba­no serve a solidariedade. Preci­sa-se reconstruir tudo. As aju­das humanitárias começaram a chegar, todavia, há muito que deve ser feito, sobretudo acau­telar possível onda de violência por parte de algumas facções internas que acusam o Governo do dia de inoperante. E assegu­rar que as ajudas humanitárias sejam para responder à emer­gência vivida pelas vítimas, em primeira fase, e de seguida elaborar linhas de apoio interna­cional para a reconstrução, evi­tando-se a estratégia do “touch and go”.

DIÁRIO DE MOÇAMBIQUE – 10.08.2020

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