16/08/2020
Desde Outubro de 2017, Moçambique é alvo de ataques de insurgentes sem rosto nem objectivos conhecidos. Alguns estudos já avançaram algumas causas mas pouco conseguiram apontar em termos de quem lidera o grupo e quais são os objectivos do grupo que actua em Cabo Delgado. O tempo encarregou-se de esclarecer que se trata de um grupo terrorista e sobretudo que tem uma logística vinda do exterior.
Da constatação de que se trata de grupo terrorista e do conhecimento que se tem de grupos de mesma índole como o al-shabab, o ansar dine e o boko haram por exemplo, pode-se chegar aos objectivos por associação. Desta feita o principal objectivo deste tipo de grupos é a conquista do poder político simbólico e material.
Por poder político simbólico refere-se a conquista da simpatia das populações onde estes grupos actuam. Um processo que pode acontecer de duas principais formas a saber: intimidação e a construção de narrativas. Por um lado a intimidação da população visa a conquista da simpatia através do fear factor (factor medo) que a longo prazo se transforma em síndroma do Estocolmo - estado psicológico particular em que uma pessoa, submetida a um tempo prolongado de intimidação, passa a ter simpatia e até mesmo amor ou amizade pelo seu agressor.
Por outro lado, a construção de narrativas visa a conquista das mentes e dos corações da população contra o Governo. As narrativas visam o recrutamento de novos membros para o grupo terrorista por via da radicalização (um processo que pode ser influenciado por factores individuais, locais, regionais e internacionais). Um aspecto importante nas narrativas é que elas ganham cada vez mais importância e força quanto mais recontadas, por essa via, as narrativas se tornam verdades incontestáveis aos olhos dos contadores. E esses contadores podem ser qualquer pessoa que ouviu, portanto todos cidadãos podem ser contadores de narrativas e nesse sentido, todos cidadãos são, potencialmente, agentes radicalizadores. Portanto, o poder simbólico é a inserção dos movimentos insurgentes dentro das comunidades ou por força (provocando medo) ou por disseminação de narrativas/ideologias, neste caso religiosas e não religiosas.
Por poder político material refere-se à conquista de território como aconteceu, por um breve espaço de tempo, em Mossul, em 2016. Importa realçar que estes movimentos insurgentes de índole extremista islâmica preferem o poder político simbólico do que o poder politico material. A razão da predileção do poder político simbólico é que este permite-lhes desenvolver uma guerra de baixa intensidade e longa duração, infiltrados entre a população e as densas matas (quarteis naturais).
Portanto em ambiente de medo generalizado, os civis vivem o dilema entre calar ou queixar (informar as forças armadas). É este dilema que pode conduzir, a longo prazo, tudo indica que ainda não é o caso, ao síndroma de estocolmo. Por outro lado, os tais insurgentes ao infiltrarem-se entre a população, podem tê-lo feito com apoios de alguns civis em radicalização (aqueles que ainda não são extremistas). Estes dois aspectos, medo generalizado e civis em radicalização, precisam de formas complementares às operações militares das Forças Armadas de Moçambique, de combate aos insurgentes, a nível local.
Uma das formas complementares seria, por exemplo, a diminuição do medo da população através de uma assistência humanitária consistente, em espaços relativamente seguros. A assistência humanitária consistente pode impedir que civis que fugiram das zonas de combate para lá regressem à procura de sustento, uma aventura que pode acabar com a sua captura e por conseguinte serem forçados a regressar com os insurgentes (a civil) sob argumento estarem a busca dos seus bens e assim se materializar a infiltração. Nesse sentido a segurança humana, no sentido de assistência humanitária, parece revelar-se uma das facetas de combate aos insurgentes.
A outra forma seria a identificação das narrativas e a sua desconstrução. Por exemplo, narra-se que os insurgentes têm muito dinheiro. O que exactamente significa muito dinheiro? Esta narrativa é recontada de boca em boca, de cidadão em cidadão e pode explicar, em parte, a adesão de alguns membros que engrossam as fileiras dos insurgentes para supostamente ganharem muito dinheiro. Esta narrativa pode ou ser desconstruída? Certamente que pode, mas não pelas forças armadas, obviamente. Assim como estas narrativas podem ser desconstruídas as narrativas de índole religiosa e ideológica. A desconstrução das narrativas radicalizantes pode ser feita através de contra-narrativas que também podem passar de boca a boca através da recontagem.
As duas perspectivas não militares mas complementares mostram que todos os cidadãos podem participar no combate aos insurgentes através da solidariedade material que ajude a melhorar as condições dos centros de acomodação. Assim, as vitimas deste conflito se apoiados de forma consistente não teriam a necessidade de regressarem às zonas de risco onde acabam capturados e voltam coartados para as suas aldeias para perpetrar ataques (provavelmente com infiltrados). O combate pode também ser feito através da desconstrução das narrativas ou recontagem de contra-narrativas. A questão que dificulta esta perpectiva é dar respostas as seguintes perguntas: quem elabora as contra-narrativas? como se descobre que esta é uma contra-narrativa? e como difundir as contra-narrativas? uma vez encontradas as respostas a estas perguntas, as contra-narrativas podem ajudar a diminuir o recrutamento de novos membros por parte dos insurgentes.
Portanto, as operações militares são apenas uma frente, muito importante na defesa da soberania, mas é preciso activar outras formas complementares de lidar com a ameaça à sobrevivência do Estado Moçambicano. O facto de a análise centrar-se no nível local não significa que deve-se se ignorar o apoio regional, como o que a Tanzania está a fazer, ao lançar ofensiva militar na fronteira com Moçambique e ao controlar as rotas migratórias. O nível internacional por sua vez pode também fortificar a assistência humanitária, que é responsabilidade primária do Estado Moçambicano, mas que na situação de múltiplas prioridades e défice orçamental não consegue cobrir com consistência as necessidades dos deslocados. Neste nível pode-se, igualmente, conseguir apoio logístico militar para reforçar as capacidades militares das Forças Armadas de Moçambique. Portanto a complexidade da guerra de Cabo Delgado exige a mobilização de todo o Estado Moçambicano e de todo apoio externo possível.
Por: Paulo Mateus Wache,
JORNAL DOMINGO – 16.08.2020
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