"Deus criou as pessoas para amarmos e as coisas para usarmos, porque então amamos as coisas e usamos as pessoas?"



segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

 

As Duas Opções de Reconciliação: a moçambicana e a sul africana[Elementos de Autocrítica]

Por ten-coronel Manuel Bernardo Gondola

Numa primeira aproximação, a palavra reconciliação, já traz consigo uma discórdia. A discórdia está, antes de mais, na acepção do próprio conceito. Por exemplo, enquanto alguns autores como; Luís Kriesberg encaram na reconciliação como um processo de [acomodação] entre pessoas ou grupos anteriormente com perspectivas e interesses antagonistas, outros criticam esta abordagem estática, preconizando a necessidade de uma reconciliação pró-activa, ou seja, que se encaixe na dinâmica das relações aquilo, que por exemplo; John Lederach denomina de «sistema de conflito», por forma a criar novas percepções e novas experiências partilhadas entre os grupos em confronto.

Só destarte, poderá ter lugar e eu me apoio em John Lederach, uma «transformação do conflito»; conflito que assente no pressuposto da paz como processo dinâmico e não finito, em que, os conflitos sociais não são nem fenómenos de curto prazo, nem podem ser eliminados permanentemente, mas antes devem ser [alvo] de uma transformação no sentido de melhorar a comunicação e compreensão mútua entre grupos sociais, promovendo formas [não violentas] de expressão das tensões sociais.

Do mesmo modo, numa outra perspectiva, a reconciliação representa para alguns um processo contínuo, que está no centro das actividades de construção da paz ou um [instrumento] para a transformação das dinâmicas negativas do conflito em dinâmicas positivas de paz, enquanto para outros é um fim em si mesmo dessas actividades.

Reconciliação, observa Oberg é algo, que está inserido dentro do conceito de reconstrução pós-conflito, uma vez que, esta não constitui algo apenas ligado a estruturas físicas é, a reconstrução de seres humanos, da estrutura social, da cultura, do ambiente e de uma cultura de paz e respeito, que conduza a uma coexistência pacífica.

Por exemplo, Johan Galtung, encara a reconciliação como um dos elementos essenciais à estabilização e ao progresso em situações pós-conflito, sendo os outros dois a «Resolução» e a «Reconstrução», formando o conjunto dos três «R», em que a omissão de um compromete a obtenção dos outros dois.

Com efeito, vários autores [John Burton] argumentam, que a reconciliação nacional não é uma forma completa de promover a transformação ou resolução duradoura do conflito. Ou seja, não constitui condição suficiente para a construção da paz. O paradigma das necessidades apresenta uma série de necessidades importantes para os seres humanos como: o sentido de segurança e de identidade, de reconhecimento e de relações sociais com valores, que estão interligadas com o contexto e com as instituições sociais existentes. Se as necessidades estão a ser asseguradas por determinada Instituição, esta recebe apoio, consolida-se e perpetua-se de onde se conclui, que a reconciliação nacional só… pode completar-se se a ordem política e social for percebida pela generalidade da população como legítima.

Logo, estas necessidades e eu me apoio em John Burton devem estar no [centro] da teoria e da prática de construção da paz, pelo que, as reformas sociais necessárias em países, que passaram por situações prolongadas de conflito violento vão muito para além dos convencionais modelos ocidentais de governação. E daí, que iniciativas como a moçambicana de opção de agir no sentido de iniciar uma nova fase da vida do país sem olhar ou recordar o passado e a sul africana, considerando, que o esquecimento é a melhor via pela formação de Comissões de Verdade e Reconciliação, constituam apenas pontos de partida para processos de transformação social, que preencham em vez de frustrarem as necessidades das pessoas e que permitam, que as instituições de sociedades em transição adquiram uma legitimidade de longo-prazo.

Moçambique e os Desafios da Reconciliação

Com o fim do conflito em 19[92], qual a abordagem mais adequada à promoção de uma reconciliação efectiva, que tenha um efeito [preventivo] relativamente ao possível ressurgimento da violência? Como lidar com o legado dos abusos de direitos humanos existentes após a guerra?

Bom! Perante as questões ou perguntas acima colocadas, pode-se dizer, que cada caso é único; dependendo a abordagem de uma multiplicidade de factores tais como; as razões, natureza e contextualização do conflito nas suas diversas fases: início, decurso e término. A composição da própria estrutura social a diversos níveis [político, económico, social], a existência de uma série de elementos históricos e sociológicos nas relações intergrupais, o papel desempenhado pelos diversos actores no conflito e na sociedade, etc.

A escolha situa-se normalmente entre várias opções, mas para efeito do presente texto quero destacar duas [2] opções: a opção moçambicana, de agir no sentido de iniciar uma nova fase da vida do país sem olhar ou recordar o passado, considerando que o esquecimento é a melhor via, e a opção sul-africana, da promoção de abordagens que valorizem a verdade e a existência de perdão entre perpetradores e opção através de Comissões de Verdade e/ou de outros mecanismos locais.

Os países saídos de conflitos podem ainda oscilar entre as diversas opções como das opções da implementação de uma estratégia de julgamento punição dos culpados [Ruwanda], no caso de se considerar, que a gravidade dos crimes cometidos é de tal ordem, que a justiça é o valor primordial a ser prosseguido e da combinação das anteriores com excepção da opção do caso moçambicano, de acordo com o que se considera mais adequado a cada caso.

No continente africano, temos hoje exemplos destas várias opções, os quais derivam desde logo da natureza dos próprios conflitos como: Ruwanda, Burundí, República Centro africana, Serra-leoa, Congo-Zaire, Angola e…, etc.

Moçambique, a meu juízo, parece constituir um dos [casos únicos] de reconciliação sem justiça. Com efeito, imediatamente após o conflito, a paz estendeu-se praticamente pelo país todo, e as questões de consolidação do cessar-fogo a curto-prazo, formação do novo Exército, processaram-se de forma relativamente rápida e fácil. Tais como acções de entrega de armas por parte da população e a reintegração social dos soldados desmobilizados dos dois [2] lados da contenda e dos refugiados nas comunidades.

As explicações para estes factos são múltiplas e interligadas. Em parte, porque o conflito moçambicano, e eu me apoio em Alcinda Honwana, não derivou de rupturas profundas no plano societário, como [fracturas étnicas ou religiosas], que marcam divisões de difícil reparação entre famílias e comunidades. Isto, e eu me apoio mais uma vez em Honwana, pode eventualmente ter facilitado um maior nível de integração do tecido social, que favoreceu um processo natural de reconciliação. Não havendo um «outro» diferente de «nós» a quem culpar, a reconciliação teve de ocorrer ao nível da raiz; no seio da família, da comunidade, da aldeia [A. Honwana].

Certamente, e como se viu, no fim do conflito, os antigos promotores, cansados pela guerra encontravam-se, também pobres e sem perspectivas de futuro, pelo que, regressaram ao convívio das suas famílias e seus locais de nascimento, enquanto os discursos políticos, concorriam para a necessidade de unidade, não subsistindo aproveitamento político ou apelo à divisão regional, tribal ou étnica.

Por outro lado, toda a população esteve envolvida na guerra, sendo vítimas, mas conjuntamente interventoras, em muitos dos casos forçados pelos dois beligerantes. Os exemplos de jovens, que foram forçados a perpetrar cenas repugnantes no decurso da guerra como ritual de fim do adestramento militar são inumeráveis. Neste sentido é, possível, que o esquecimento tenha sido adotado como uma forma de perdão para actos individuais, que na comunidade reconheciam ter sido, directa ou indirectamente forçados.

Com efeito, apesar de no Acordo Geral de Paz [A.G.P], a justiça ter sido sacrificada em nome da necessidade de enterrar o passado e preservar uma paz inclusiva, através da concessão de um perdão da parte a parte; A. Honwana, salientam a importância, que os mecanismos locais de restauração da confiança e de reconciliação tiveram ao nível da transformação social no sentido de uma dinâmica positiva de paz.

Destarte, estando os conceitos de guerra e de vingança conotados com espíritos e forças negativas exteriores aos próprios indivíduos e que podem contaminar toda uma comunidade, a violência, e eu me apoio mais uma vez em A. Honwana, foi encarada como uma patologia, que necessitava de cura, tal como outras doenças.

Assim, os curandeiros tradicionais foram essenciais na condução de inúmeras cerimónias e rituais destinados a purificar os indivíduos, tanto vítimas como perpetradores e retirar-lhes a guerra permitindo, destarte cortar as ligações ao passado, reintegrá-las na comunidade e reiniciá-las numa nova fase dos relacionamentos interpessoais.

Portanto, esta abordagem ainda, que tenha sido no geral “bem-sucedida” levanta, contudo, questões relativas aos custos futuros da negação da responsabilização do passado e da própria cultura de impunidade, uma vez que, permanecem na sociedade moçambicana, factores estruturais de crise, que não foram devidamente equacionados ao longo das últimas décadas.

Desafios da Paz e Reconciliação em Moçambique

Somos uma família do Rovuma ao Maputo/do Zumbo ao Índico, e o maior desafio prende-se com a realidade em curso no país, traduzido na transformação das diferenças em vantagens do nosso convívio. Como bem disse; Dom Jaime Gonçalves em 20[15] para alcançar os objectivos, que a reconciliação impõe precisamos todos de exercitar variáveis como: a solidariedade, a paciência, boas práticas e aceitação mútua. Na verdade, trata-se de valores, que os moçambicanos já experimentam há vários anos, fruto da natureza eminentemente hospitaleira e generosa do nosso povo.

Pela frente, fica o desafio de tornarmos efectivos e eficazes apelos como o do representante da Santa Sé, no sentido de pormos em cada canto de Moçambique, as sementes da reconciliação nacional para bem da paz e da estabilidade.

Naturalmente, a paz é um dado adquirido, isso não se pode mais negar, mas há essa tarefa, que eu vou chamando como processo, que é reconciliação nacional. Será, que já estamos reconciliados? Apesar de tratar-se de um processo e todos concordamos com isso. E…, se nós moçambicanos tivermos, que falar em índice em que nível de % estaríamos em termos de reconciliação nesta altura no país?

Repare! Um dos grandes problemas, que nós temos é o conceito de paz, que é dominante entre todos nós. Não estou a falar particularmente de uma força política, mas o conceito de paz, que foi dominante nos vários processos foi àquele conceito da paz vista como a mera ausência do conflito armado. E isto, a meu juízo, infelizmente negligenciou ou está negligenciando aspectos muito mais importantes como; a questão da harmonia, a questão da justiça, a questão da fraternidade, da tolerância, da inclusão, da paciência, das diferenças sociais…

Tanto é assim, que durante esses anos todos, sempre que há uma tensão, ou fractura muito importante na sociedade, la viemos nós com discurso como preservarmos a paz, mas sempre entendida no imaginário colectivo de muita gente é, que a partir do momento em que não há forças a fazer tiros; há paz.

Por fim, outra das questões, e eu me apoio em Brazão Mazula, que é importante reconhecer e não adormecermos nos ganhos da paz é que, está a emergir não só, à volta dos Partidos políticos, inclusive na sociedade sectores fundamentalistas, para quem a democracia, as leis, e sobretudo as próprias eleições, servem meramente para [legitimar] a sua apetência pelo poder. E é importante, que um país, como nosso esteja atento a esses sinais. Se repararmos com muito cuidado, de alguns anos a esta parte, há uma tendência muito grande da sociedade radicalizar-se mais com espírito belicista. E…isso é grave!

n/b:

Este texto foi fundamentado em alguns resultados da minha DissertaçãoPaz e Reconciliação NacionalPor isso, escolhi um tópico, que constitui o centro mais intrínseco da minha comunicação, naquele encontro o ano passado.

Manuel Bernardo Gondola

Em Maputo, aos [03] de Janeiro 20[21]

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