Contextualização
O estabelecimento dos grupos terroristas al-Shabab e o Estado Islâmico com reivindicações para estabelecer a Lei Islâmica, os interesses corporativos da indústria petrolífera e o lobby de Erik Prince, um ex-agente da elite militar americana, agora à frente de uma proposta de negócios privados para pacificar Cabo Delgado, são considerados até agora por acadêmicos, imprensa e sociedade civil como as motivações que explicam a insurgência armada na província potencialmente mais rica de Moçambique.
De longe, o tráfico de drogas pesado e a extração ilegal de recursos são enquadrados na equação. No entanto, como documentado por relatórios internacionais e apreensões frequentes da polícia, a costa de Cabo Delgado tem sido um importante corredor de drogas na África Oriental desde a década de 1990, uma posição recentemente expandida depois que a Tanzânia e o Quênia reprimiram as redes de tráfico, empurrando-as para as águas moçambicanas.
Uma das maiores apreensões de drogas da história do país ocorreu naquela província em 1997, quando 12 toneladas de haxixe foram apreendidas, parte dela na praia e outro contêiner a caminho de Nacala. Em dezembro do ano passado, no meio da guerra insurgente, dois navios transportando duas toneladas de heroína foram interceptados pela Marinha e pelas Forças de Defesa e Segurança depois de ficarem presos no mar, resultando na detenção de 25 estrangeiros.
Cabo Delgado, em suas mais de trinta ilhas, é um ponto de trânsito, mas também usa o sistema de cabotagem e transporte terrestre para drenar drogas para Nampula, o centro de distribuição para destinos estratégicos.
O Escritório de Informações Financeiras de Moçambique (GIFIM) usa cálculos de pesquisa independentes estimando que a droga que passa por Moçambique vale US$ 600 milhões por ano, uma economia superior ao valor desembolsado pelos parceiros de cooperação, bem como as receitas de algumas das principais commodities de exportação. Desse montante, 100 milhões de dólares são deixados na rede de corrupção em Moçambique, composta por políticos influentes ligados à Frelimo, traficantes locais e funcionários do Estado designados à Polícia, Migração e Alfândega.
Mais do que o fundamentalismo religioso e a disputa das multinacionais petrolíferas, é bastante óbvio que hoje os cartéis de drogas são os que mais lucram com a guerra em Cabo Delgado, já que a já fraca vigilância marítima tornou-se praticamente inexistente, com todas as forças focadas em deter o avanço cada vez mais concertado e regular do Estado Islâmico e dos terroristas al-Shabab.
Há vários anos, a Marinha, por falta de meios, tem sido o ramo das forças armadas com mais homens em terra do que no mar. É por isso que, durante três anos, gangues armadas têm entrado no mar, destruindo e saqueando os distritos ao longo da costa da província, com o Estado incapaz de detê-los.
Enquanto tentava resolver a guerra no campo de batalha, a área do Oceano Índico ao longo de Cabo Delgado fortaleceu seu papel como viaduto para o contrabando de narcóticos e o consequente enriquecimento ilícito das elites da máfia e redes de traficantes. Além das drogas, a guerra tem desviado a atenção da extração ilegal de recursos naturais, prática criminosa associada à imigração ilegal no norte do país.
Contrabando do paraíso
A província de Cabo Delgado está localizada na região norte de Moçambique e corresponde a 10,34% da superfície nacional com cerca de 4.760 km² de águas interiores. Seus limites são, ao norte, o rio Rovuma, que serve como fronteira natural com a República Unida da Tanzânia, com uma extensão territorial de cerca de 250 Km; ao sul do rio Lúrio; a oeste os rios Lugenda, Luambeze, Ruaca e Mewo o separam da província de Niassa e a leste tem o Oceano Índico, que banha toda a sua costa leste com um comprimento de 430 km.
A fronteira com a Tanzânia é a porta de entrada para imigrantes ilegais da Somália, Quênia, Etiópia, República Democrática do Congo e Nigéria, que são atraídos pela extração ilegal de madeira e pedras preciosas, especialmente ouro e rubi. A rede de mineração ilegal entra em Cabo Delgado a partir da área de Inamoto, no posto administrativo de Quionga, no distrito de Palma, um pedaço de terra despovoado, com várias áreas de entrada e saída que são descontroladas pelas autoridades migratórias e aduaneiras.
Imigrantes ilegais atravessam o rio Rovuma por pequenos barcos. Em terra, eles pegam o transporte público ou alugam carros, predominantemente Toyota Land Cruiser, e vão para Palma-sede, uma distância de cerca de 45 quilômetros. A partir daqui, os grupos se dividem de acordo com os interesses, indo principalmente para Montepuez e Nampula, áreas com pedras preciosas valiosas e comércio informal, respectivamente.
Outra janela de entrada em Moçambique da Tanzânia é o distrito histórico de Mueda, mas as estradas de acesso pobres, a longa distância das áreas de mineração e o controle rigoroso na fronteira desencorajam a imigração ilegal, colocando Inamoto como a rota favorita para estrangeiros que buscam riqueza fácil.
Usada por redes que facilitam o transporte de estrangeiros que fogem da guerra e da fome em suas terras em busca de segurança e trabalho, a província de Cabo Delgado também é uma porta de entrada para a África do Sul. As autoridades migratórias frequentemente neutralizam grupos de imigrantes ilegais, e estima-se que mais de seis mil foram expulsos no ano passado apenas em Cabo Delgado.
A instabilidade militar na província facilitou a entrada de imigrantes ilegais e a extração ilegal de recursos naturais, já que a atenção das autoridades, da imprensa e da sociedade em geral está focada em conflitos armados. As Nações Unidas estimam que a guerra deslocou 211.000 pessoas e há relatos de insurgentes e imigrantes ilegais camuflados como vítimas da guerra.
O Oceano Índico: O viaduto da droga
Se nas águas frescas do rio Rovuma as entradas de Moçambique estão marcadas, mesmo que a infiltração de imigrantes não seja controlada, o mesmo não pode ser dito das dezenas de pontos de acesso que o Oceano Índico dá à província de Cabo Delgado. Esses pontos de acesso foram transformados por cartéis de drogas em armazéns que ligam o produtor ao consumidor.
A província está dividida em dezessete distritos – Ancuabe, Balama, Chiúre, Ibo, Macomia, Mecúfi, Meluco, Metuge, Mocímboa da Praia, Montepuez, Mueda, Muidumbe, Namuno, Nangade, Palma, Pemba e Quissanga. Parte desses distritos é atravessada pelo mar, compõem o arquipélago de Quirimbas com mais de trinta ilhas, que servem como áreas de chamada e portos de cabotagem levando a droga para a terra.
A área costeira de Cabo Delgado é longa e não tem controle estadual. As praias são calmas e são atravessadas por dunas, o que permite que as drogas sejam escondidas e drenadas por pequenos barcos. As maiores apreensões ocorrem na ilha de Ibo, nas praias de Quissanga e em Pemba, mas a incapacidade de monitorar não permite medir se a droga apreendida é mais do que aquela que passa disfarçada.
O porto de Nacala é apontado como um dos centros de saída, com a heroína sendo a principal droga em Moçambique, vinda do Afeganistão e Paquistão. Normalmente, a droga viaja em contêineres misturados com outras mercadorias.
A rota sul da droga produzida no Afeganistão e Paquistão parece uma distração muito longa e cara, mas 10 quilos de heroína podem custar cinco dólares em locais de produção e render até 20.000 dólares quando vendidos em uma capital mundial moderna.
A droga também é levada para a África do Sul, de onde parte para os destinos de consumo, ou seja, Europa e Estados Unidos da América. Repetidas vezes, as autoridades sul-africanas fazem apreensões em sua fronteira depois que a droga passa pelo posto de fronteira de Ressano Garcia em Maputo.
Uma das principais apreensões foi em maio de 2019, quando três moçambicanos foram presos na estrada N4 em Kaapmuiden, perto de Nelspruit, capital de Mpumalanga. Eles possuíam heroína avaliada em R60 milhões, cerca de 4 milhões de dólares.
Em junho deste ano, dois caminhoneiros moçambicanos que haviam passado pela fronteira de Ressano Garcia foram interceptados logo depois no lado sul-africano com mais de 200 quilos de heroína.
A regularidade com que ocorrem as apreensões indica que o tráfico de drogas é um negócio de rotina em Moçambique, mas muitas vezes não encontra proteção no país vizinho.
Nampula: O habitat dos traficantes
Várias publicações sobre o tráfico de drogas notam que desde Cabo Delgado as mercadorias seguem, por pequenos barcos ou veículos, até a província de Nampula, o verdadeiro centro do negócio de drogas pesadas em Moçambique e lar de traficantes e traficantes de drogas.
Os Estados Unidos da América e da Inglaterra, segundo o GIFIM, chamaram a atenção das autoridades moçambicanas para as distorções da economia no norte do país, principalmente em Pemba e Nampula, mencionando que o crime organizado introduz "dinheiro sujo" no sistema financeiro nacional.
A agitação no Aeroporto de Pemba, as conexões com bairros ricos como Montepuez e Palma e a dinâmica em Nacala e Nampula Não parecem encontrar nenhuma justificativa em suas estruturas econômicas básicas, ou seja, agricultura, pesca e comércio.
Moçambique não é um mercado para o consumo de drogas pesadas, pois é um país de baixa renda. O Relatório Anual sobre Drogas, publicado na semana passada pelas Nações Unidas, destaca que heroína, cocaína e metanfetamina são consumidas em países desenvolvidos e de alta renda com capacidade de compra.
Drogas e a insurgência
A influência de Moçambique no crime organizado e no tráfico de drogas levou as Nações Unidas a abrir seu escritório para lidar com o problema em Maputo em 2019, a pedido do governo moçambicano. César Guedes, peruano-canadense com 20 anos de experiência na Organização das Nações Unidas, foi eleito chefe do escritório em Maputo. Ele tinha chefiado o escritório no Paquistão e bolívia, dois grandes sindicatos para a produção industrial de heroína e haxixe.
A abertura do Escritório das Nações Unidas sobre Crime Organizado e Tráfico de Drogas em Moçambique é um sinal de que a dinâmica do tráfico de drogas, promiscuidade institucional e lavagem de dinheiro são significativas e carecem de uma abordagem mais estrutural e internacional.
Este escritório confirma a visão de que o tráfico de heroína do Afeganistão para a Europa é uma das principais razões para o conflito em Cabo Delgado. Informações obtidas pela organização indicam que a produção de drogas praticamente triplicou nos últimos dez anos, e Moçambique se encaixa em um dos corredores de tráfico que passa pela costa leste da África.
Vejamos declarações recentes à Agência Lusa do Escritório das Nações Unidas sobre Crime Organizado e Tráfico de Drogas em Moçambique: "Aqui, eles aparentemente encontram um país que tem um local estratégico único para facilitar o tráfico de drogas. O que esses países oferecem é facilidade de passagem. Não é uma coisa sofisticada, mas eles têm fronteiras enormes e as autoridades não estão em todos os momentos. E os traficantes sabem disso... É uma situação externa com grupos disfarçados que querem fazer mal a países que sempre viveram juntos pacificamente. Eles têm uma agenda perigosa, não em consonância com a realidade dos países; é uma agenda criminosa e ilegal fazer seu próprio negócio em uma situação difícil. É em tempos de crise que os traficantes e aqueles que estão ligados à economia ilegal estão mais preparados para desenvolver seus negócios ilegais. Navios grandes e pequenos, fora da temporada de ciclones, chegam pouco a pouco. É uma longa, mas segura jornada onde muito dinheiro é feito.
Fronteiras descontroladas
As declarações do representante do Escritório das Nações Unidas sobre Crime Organizado e Tráfico de Drogas mostram fragilidades no controle do espaço marítimo de Moçambique, situação que o torna (espaço marítimo) permeável não só ao tráfico de drogas, mas também ao desenvolvimento de ações de pirataria e saque de seus recursos marítimos.
Há muitas situações que mostram o vácuo em que a costa de Cabo Delgado está. Em 2010, um navio nacional chamado "Vega 5" foi sequestrado na margem de Sofala, a 600 milhas da costa de Inhassouro, na província de Inhambane, e durante dias navegou pelas águas moçambicanas sem perturbações em direção à Somália sem meios de pará-lo. O navio foi reajustado, mas recuperado pelas autoridades militares indianas um ano depois de ter sido tomado pelos piratas.
A pesca ilegal doméstica e internacional é outro fator que revela a falta de capacidade de vigilância. O Ministério da Pesca estima que a pesca ilegal na costa moçambicana causa um prejuízo anual de US$ 60 milhões ao erário público. Muitas vezes há relatos de navios internacionais invadindo águas moçambicanas para pesca e descarte de resíduos.
A vigilância marítima tem sido realizada de forma irregular por meio de missões militares conjuntas com vários países parceiros, mas a frágil ação não permite uma intervenção capaz de conter a desordem nas águas moçambicanas.
As apreensões ocorridas são fortuitas, resultantes de traços inadvertidos ao longo da cadeia de valor da droga em Moçambique. Por exemplo, os dois barcos apreendidos em dezembro do ano passado encalharam no mar em Pemba – situação que despertou as autoridades. Em Nampula, há casos de drogas encontradas em casas e com pescadores locais.
Isso aponta para a falta de respostas capazes de identificar rotas de tráfego em sua origem, o que permitiria um combate mais efetivo e desmantelamento de grupos que facilitam a circulação de drogas.
Covid-19 transfere drogas para Cabo Delgado
O Relatório Anual sobre Drogas adverte que o Covid-19 aumentou o uso do transporte marítimo para o tráfico de heroína, uma vez que as medidas de restrição dos países para prevenir a doença incluíram a suspensão de voos e o fechamento de fronteiras terrestres, bem como o endurecimento do controle migratório.
Esses fatores mudaram as drogas do ar e da terra para o mar, com o mar assumindo o papel de uma ponte entre áreas de produção, passagem e consumo. Como resultado da pandemia, mais agricultores no Paquistão e no Afeganistão adotaram o cultivo ilícito, seja porque as autoridades estaduais podem ser menos capazes de exercer o controle ou porque mais pessoas podem ter que recorrer a atividades ilegais devido à crise econômica.
O documento da ONU aponta a rota sul e o Oceano Índico que passa por Moçambique, como áreas para as quais os cartéis de drogas se transformaram. A rota do tráfico é definida de acordo com a porosidade das fronteiras e a incapacidade das autoridades do país de monitorá-las.
Essa mudança pode significar que o tráfico de drogas flui ao longo da costa de Cabo Delgado pode ter aumentado, o que é evidenciado em parte pelas duas apreensões em um período de uma semana em dezembro do ano passado de dois navios contendo duas toneladas de haxixe.
Conclusão
A falta de meios para a vigilância marítima, como descrito acima, deixa uma parte importante da costa moçambicana nua, que é usada como rodovia pelas redes de tráfico de drogas. Vindo do Afeganistão e paquistão, a droga contorna os países com o controle mais rigoroso e procura rotas vazias, mesmo que as distâncias sejam longas.
Este é um padrão estabelecido na área costeira moçambicana, que a tornou um corredor de drogas desde a década de 1990. É uma preocupação pública que não haja uma intervenção estratégica para prevenir e combater as fragilidades marítimas e terrestres.
Com a intensificação da guerra em Cabo Delgado, que assumiu o aparecimento da guerrilha e tornou-se mais difícil de conter, a migração e o controle de fronteiras e vigilância tornaram-se mais frágeis. Isso abriu espaço para os traficantes reforçarem sua ação, ainda mais porque o Covid-19 levou à interrupção do transporte aéreo e restringiu a circulação de pessoas, empurrando a droga para as rotas marítimas.
Assim como as drogas, a extração ilegal de recursos naturais, ou seja, pedras preciosas e madeira, é agora realizada sem vergonha, incentivando a imigração ilegal e a deterioração do poder do Estado no país.
O negócio de drogas em Moçambique só funciona porque existe um Estado que abriga o poder, que ordena passagem livre e não tem interesse em consolidar as instituições de defesa e segurança.
Lista de referência UNODC. Relatório Mundial sobre Drogas 2020.
https://wdr.unodc.org/wdr2020/field/WDR20_BOOKLET_1.pdf.
Moçambique/Ataques: Tráfico de droga motivação conflito em Cabo Delgado – ONU. Lusa, Maputo, ano 2020
https://www.lusa.pt/article/yQta9B8w08DHcwznkYzfODMSZM5iuSI1/mo%C3%A7ambique-ataques-tr%C3%A1fico-de-droga-motiva-conflito-em-cabo-delgado-onu
Gabinete de Informação Financeira de Moçambique. Prevenção e combate ao branqueamento de capitais. Maputo, 02 de Outubro de 2019
Joseph Hanlon. O tráfico de drogas é o maior negócio em Moçambique, Maputo, 2000.
- Moçambique: Polícia detém mais suspeitos de tráfico de drogas em Cabo Delgado. Cabo Delgado, 2019.
Fonte: CDD Moçambique