"Deus criou as pessoas para amarmos e as coisas para usarmos, porque então amamos as coisas e usamos as pessoas?"



quarta-feira, 22 de julho de 2020

Ataques: Há dias em que só há fome para partilhar ao relento

Abubacar Assan improvisa uma tenda com dois paus compridos encostados a um muro e por cima dos quais coloca longos pedaços de plástico, encontrados nas ruas.

Dorme ao relento, no chão, no quintal da casa sobrelotada do cunhado e a tenda improvisada serve para se proteger nas noites de Inverno no bairro de Paquitequete, em Pemba, um dos pontos de chegada de deslocados da violência armada em Cabo Delgado, norte de Moçambique.
Abubacar, 44 anos, biscateiro em obras de construção, vivia com a mulher e seis filhos em Quissanga, vila costeira, cerca de 100 quilómetros a norte da capital provincial, Pemba, até ao ataque de um grupo armado na madrugada de 25 de março.
Naquela noite, recorda, ao som dos disparos seguiu-se o pânico da população da vila, a correr, em fuga, na escuridão.
"Fomos perseguidos por três" dos invasores, conta Abubacar, três vultos armados de que escaparam.
Passaram três dias escondido no mangal, ele e a família, sem comer, antes de conseguirem chegar à ilha Quirimba, onde outros deslocados também encontraram refúgio, mas sem mantimentos e sem dormir.
As noites passaram a ser de susto permanente, relata Abubacar, sempre a recear o próximo ataque.
Ao cabo de 20 dias, integrou um dos grupos que, em barco, foram chegando à praia dos pescadores do Paquitequete, em busca de alimento e solidariedade.
Aquela praia é um local onde invariavelmente há embarcações aparentemente frágeis, mas sobrelotadas de passageiros e carga para qualquer ponto da costa - e também é assim hoje.
Está à vista mais um barco cheio a carregar tudo e todos para vencer o vento que sopra forte.
Hoje não há deslocados a entrar, mas o bairro do Paquitequete está repleto: são ruas de famílias, umas após as outras, a acolher parentes e amigos que desceram do norte da província para fugir aos ataques armados que já fizeram pelo menos mil mortos em dois anos e meio e 250.000 deslocados.
Tudo se intensificou este ano, conta Atanásio Assan, porque até agora "vivíamos numa boa. Eram eles, os familiares de Quissanga, que mandavam produtos [agrícolas] para cá. Agora é ao contrário, somos nós que os temos de ajudar".
Atanásio Assan, 38 anos, o cunhado que acolheu Abubacar, faz biscates como pedreiro no bairro Expansão, na outra ponta de Pemba e é o único que tem um rendimento para comprar alguma comida numa casa esquálida onde de repente passaram a viver 22 pessoas.
"Suficiente não é, mas dá para aguentar. Não chega sempre. Há dias em que não temos o que comer, não há nada para cozinhar", descreve, com um longo suspiro e olhos emocionados.
"Aguentamos assim mesmo. Passamos fome. Fazer o quê? É triste". À frente dele está um pátio cheio, a maioria crianças, pelo menos um bebé de colo e outros com dois e três anos.
Hoje há um pouco de polvo ao lume, mas é um dia raro, numa rotina de farinha de milho, arroz e esparguete.
O cenário repete-se no bairro de Paquitequete e por todo o lado, conta Nassurulahe Dulá, dirigente provincial do Congresso Islâmico de Moçambique (Cimo).
"Alguns comem papa de manhã e só almoçam às 17:00 para não jantar", outros "fazem uma refeição por dia", descreve, ao falar da angústia de a comida nunca chegar, por mais ajudas que se consigam, tal a maré de deslocados.
"A comunidade islâmica e a ação humanitária têm se mobilizado, mas não chega", realça.
"A necessidade que existe com os deslocados é de mantimentos, alimentação. Saíram assim como vieram, com a roupa que têm no corpo", abandonando as terras onde cultivavam alimentos.
A maré continua: "ainda há dias fui informado da chegada de uma família de 27 pessoas de Mocímboa da Praia que estão numa cabana onde nem cinco pessoas podem dormir".
Este é o retrato que se pode fazer também da casa de Atanásio, que acolhe a família de Abubacar e outros deslocados, a dormir onde podem, dentro de casa e no quintal empoleirado sobre a praia dos pescadores do Paquitequete.
Abubacar enrola-se nos plásticos da tenda que arruma a custo, por causa do vento, e as crianças riem-se. Ele também se ri.
"Às vezes eu esqueço-me do aconteceu e consigo sorrir um pouco. Outras vezes fico doente da cabeça ao pensar na vida que tínhamos", em paz, em Quissanga.
A noite começa a cair, pois no inverno de Pemba o sol põe-se pelas 17:00 e pouco depois já ninguém circula no bairro de Paquitequete.
"À noite não se anda por aí", relata Atanásio, porque as autoridades suspeitam que nas levas de deslocados há membros da insurgência que assola a região.
Quem circular à noite, arrisca-se a ser detido para averiguações, descreve.
"Circular é só até às 20:00. Mais do que isso é suspeito", acrescenta, sem discordar: "É preciso" que haja restrições, diz, para "evitar esses problemas" que estão a virar Cabo Delgado do avesso desde 2017.
Alguns dos ataques são desde há um ano reivindicados pelo grupo 'jihadista' Estado Islâmico e a ameaça terrorista é reconhecida dentro e fora do país, tendo os grupos de rebeldes ocupado importantes vilas de Cabo Delgado (situadas a mais de 100 quilómetros da capital, Pemba) durante dias seguidos, antes de saírem sob fogo das Forças de Defesa e Segurança moçambicanas.
Somando as comunidades de acolhimento, também já de si empobrecidas, estima-se que haja 712.000 pessoas a necessitar de ajuda na província.
LUSA – 21.07.2020
NOTA: Concordo com o Bispo de Pemba: "O mundo não tem ideia do que está a acontecer”. Mas a culpa é apenas do governo da Frelimo que continua a esconder  a verdade real.
Fernando Gil
MACUA DE MOÇAMBIQUE

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