A defesa de Samito Machel, face a uma Nota de Acusação que recomenda sua expulsão do partido Frelimo, é mais do que uma defesa: é um libelo acusatório. Viperino. Incisivo. Em boas partes do seu argumento, ele desfere golpes de forma ininterrupta. O principal visado é o Presidente da Frelimo, Filipe Nyusi, a quem acusa de estar a transformar o partido num grupo que depende da vontade de uns poucos, numa formação anti-democrática descambando para a tirania.
E desafia o Comité de Verificação do Comité Central (CVCC) a abrir um inquérito para levantar as evidências que mostram como Nyusi manipula o partido para implantar um regime de pensamento único, autocrático.
J’accuse! Nas vésperas de uma sessão Comité Central (a realizar-se no início de Maio) ele ataca tudo e todos e muda os termos da equação: o acusado deve ser o presidente da Frelimo, Nyusi, e não ele.
A defesa de Samito Machel foi entregue ao Secretariado do Comité Central no passado dia 26 de Março, em resposta a uma Nota de Acusação que acusa o filho do primeiro Presidente de Moçambique de ter violado os deveres essenciais de membro da Frelimo, ao se ter apresentado como cabeça-de-lista da AJUDEM (uma organização cívica juvenil) nas recentes eleições municipais em Maputo.
Samora Machel tencionava concorrer pelo seu partido, e para o efeito contava com apoio de todos os comités distritais; nas primárias internas, o seu nome foi afastado da corrida, e a Frelimo optou por Eneas Comiche mediante indicação expressa da Comissão Política; em vez de se conformar, Samito juntou-se à AJUDEM, desafiando a Frelimo, mas a lista do grupo foi chumbada pela Comissão Nacional de Eleições por votos maioritários dos partidos políticos representados no órgão eleitoral).
A Nota de Acusação, preparada em resposta a um inquérito disciplinar instaurado por indicação do Secretário-Geral da Frelimo, Roque Silva, foi entregue a Samito no passado dia 11 de Março, depois de uma breve audiência com os dois relatores do caso (Francisco Cabo e Filipe Sitoe). Samora Machel Júnior tinha 15 dias para apresentar sua defesa, e fê-lo de forma incisiva, desconstruindo todo o emar
Roque Silva devia ser sancionado por abuso de funções
Samito Machel começa por denunciar a nulidade do procedimento disciplinar por incompetência de quem o levantou, designadamente o Secretário-Geral, Roque Silva. Como membro do Comité Central (CC), quem devia mandar instaurar o inquérito disciplinar contra si é o secretariado do órgão, e não Roque Silva. Samito começa por desmascarar esse vício gravoso, mostrando ter-se tratado de uma violação dos estatutos da Frelimo. Por isso, Roque Silva devia ser sancionado por “Abuso de funções”.
A Nota de Acusação denuncia o facto de Samito Machel ter-se alistado na AJUDEM, a fim de concorrer como cabeça-de-lista para o Conselho Autárquico da Cidade de Maputo. Samito diz que isso não é verdade. “Não foi como membro da Frelimo; foi como cidadão”, disse ele. Recordou que a AUDEM é um grupo cívico composto por membros da Frelimo, e argumentou que a Constituição da República (CR) protege a participação cívica dos cidadãos. E justificou que se juntou à AJUDEM pelo único facto de ter sido afastado da corrida interna na Frelimo, onde ele, enfatizou, era o único que cumpria com 100% dos requisitos de candidatura. Mas houve “fraude”, acusou Samito. E quando procurou explicação junto dos órgãos sobre a sua exclusão, todos deram-lhe costas. O único que tentou justificar-se foi o antigo Primeiro Secretário da Frelimo na Cidade, Francisco Mabjaia. Lacónico, Mabjaia disse que a decisão da exclusão de Samito tinha sido sua.
Não convencido, Samora Machel Júnior bateu à porta da Ponta Vermelha, o palácio Presidencial, mas Nyusi deu-lhe costas. Conversou com os presidentes honorários, Joaquim Chissano e Armando Guebuza. E tentou um encontro com Roque Silva, mas o SG também optou pelo “nim”. Uma vez, lê-se na defesa, Samito deslocou-se à sede do Comité Central numa última tentativa de avistar-se com Roque Silva. No átrio, ele estendeu a mão para cumprimentar o SG, mas não foi correspondido.
Estes episódios, nomeadamente a falta de uma explicação cabal sobre as razões da sua exclusão, determinaram a sua opção de entrar para a lista da AJUDEM. Para ele, “estava claro que o Partido e os seus altos dirigentes (o Presidente e o SG) não cumprem as directivas internas”; “Nyusi e Roque Silva pensam que a Frelimo é a sua vontade”; “Ficou claro que eu não podia concorrer dentro dos órgãos do partido”.
A Nota de Acusação insinua que após ter sido excluído das eleições internas, Samito Machel podia ter impugnado o acto. “Impugnar algo junto de quem é parte do problema?”, questionou-se ele, acusando o Comité de Verificação da Cidade de Maputo de ser “autor moral e material de todas as irregularidades”.
Não impugnou e optou pela AJUDEM. Mas o grupo foi excluído pela CNE, num acto que agora é interpretado por Samito Machel como uma cabala. “Tenho provas cabais de terem existido vários crimes e ilícitos eleitorais, para a exclusão da AJUDEM junto da CNE, com autores morais e materiais identificados; Tenho provas cabais de a exclusão da AJUDEM dentro da CNE ter sido feita com o beneplácito da direcção do Partido aos mais diversos níveis, tendo-se comprado consciências”.
A principal acusação que recai sobre Samora Machel Júnior é a de que ele violou a alínea J) do nº3 do artigo 12 (Deveres de Consulta) dos Estatutos da Frelimo, aprovados pelo CC em 2018. A alínea em causa diz que um membro “não pode ser candidato para qualquer função por outro partido ou organização associada ou deles dependentes, sem a devida autorização dos órgãos competentes da Frelimo”. Como era esperado, sobre esta acusação em particular, Samito Machel demonstrou o que é público e notório: a AJUDEM não é partido político, nem é uma organização associada a um partido. “Por isso, não precisava de autorização”.
A Nota acusa-lhe também de ter violado o artigo 23 dos Estatutos da Frelimo (Liberdade de Crítica e Opinião). “1) Os membros da Frelimo detêm a mais ampla liberdade de crítica e de opinião, sendo-lhes exigido o cumprimento e o respeito pelas decisões tomadas hierarquicamente, nos termos do estatuto; 2) O Partido estimula o diálogo e reconhece aos seus membros o direito de consulta, de concertação de opiniões para a exposição de ideias, no seio dos órgãos, não sendo, porém, permitida a estruturação de tendências no seio do partido”.
Samora responde de forma cáustica, visando directamente Filipe Nyusi e Roque Silva: “O artigo 23 não se aplica a mim”, diz. E remata: “Pela violação do artigo 23 deve ser acusado individual e solidariamente o camarada Presidente do partido e o Secretário-Geral, designadamente por não permitir a crítica, não estimular o diálogo, e não reconhecer aos membros os seus direitos constitucionais”.
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