A opinião de: António Frangulius*
Achegas sobre a Legitimidade de Actuação da Polícia nas Eleições
O princípio democrático da organização do poder político implica que todos os seus órgãos e os seus respectivos actos exibam uma legitimação democrática, seja directamente através de eleição dos seus titulares, seja indirectamente através da sua responsabilidade perante os órgãos eleitos.
Este é o Modelo que nós escolhemos em 1990, abandonando o Modelo nascido da Revolução Russa de 1917, de partido único, controlo absoluto do partido sobre o Estado. O modelo do Estado Centralista e de poder concentrado Estalinista. O Estado de inexistência de entidades públicas autónomas. O Estado de inspiração Marxista-Leninista.
O Modelo de Estado que escolhemos em 1990 é Estado de Direito democrático. Embora inspirado no Estado Liberal de Locke, Rousseau e Montesquieu é vizinho do Estado do Direito Social.
Este Estado que escolhemos em 1990 e consolidamo-lo pela Revisão Constitucional de 2004, não é já aquele Estado que apenas preconizava: a subordinação do Estado ao direito; a divisão dos poderes; a garantia dos direitos fundamentais; a legalidade da administração; a previsibilidade e o cálculo prévio das medidas estaduais e a sua fiscalização judicial.
Não! O Estado de Direito Democrático vai mais longe ainda.
A qualificação - após a revisão constitucional de 1990 - como democrático, decorre seguramente, do propósito de não deixar que o conceito, isoladamente considerado, pudesse ser adoptado com um sentido puramente formal, numa perspectivaa-democrática.
O Estado de Direito Democrático vem responder às limitações reveladas, na prática, pelos Modelos que lhe antecederam nomeadamente o Estado de Direito Liberal, o Estado de Não-Estado de Direito e o Estado de Direito Social.
Enquanto o Estado de Direito Social, mais vizinho do nosso, orienta-se no sentido da realização do bem estar geral e da justiça social, o nosso orienta-se pelo princípio do Estado de Direito em que tem como valores históricos e democracia, o socialismo, a liberdade e a paz.
Neste Estado, o princípio enformador de Direito Democrático se orienta no sentido de protecção dos cidadãos contra a prepotência e o arbítrio (especialmente, por parte do Estado). É aqui onde encontramos contrariamente ao Estado de Direito Social: os princípios da constitucionalidade; a fiscalização da constitucionalidade; aprotecção dos direitos, liberdades e garantias e o respectivo regime; o princípio de legitimidade da administração (com direito à anulação contenciosa dos actos ilegais e a responsabilidade do Estado pelos danos causados aos cidadãos); a reserva da função jurisdicional para os tribunais; a independência dos juízes; a garantia de acesso aos tribunais; a reserva da Lei, em matéria de restrição de direitos, liberdades e garantias e de criação de impostos; as limitações à admissibilidade de leis retroacticas, sobretudo em matéria criminal.
O Estado de Direito é insitamente, Estado de Direito Democrático e não se pode falar de Estado que não seja também Estado Democrático de Direito, logo, Estado Democrático-Constitucional, onde se integram: O princípio do Estado Democrático, nas três vertentes formal-organizativas de democracia política (soberania popular, exercício pelo sufrágio universal, igual, secreto e directo do poder político, participação organizada do povo, nas agendas nacionais e descentralização do Estado, através da autonomia local autárquica); A consagração da democracia económica, social e cultural; O dever de o Estado respeitar e garantir os direitos, liberdades e garantias; O pluralismo político.
Para concluir esta elaboração teórica do nosso Modelo de Estado resta-me dizer que o nosso Estado é um Estado de Democracia Real por oposição ao Estado de Democracia Formal, como é o Estado de Direito Liberal que, enformado pelo princípio de legalidade administrativa, representou um avanço em relação ao Estado de Polícia em que os príncipes se consideravam obrigados a prestar contas apenas a Deus.
O nosso Estado é Estado Democrático de Direito, pois este apresenta duas componentes incindíveis: O Estado de Direito numa componente e o Estado Democrático noutra.
O Estado de Direito é democrático e só sendo-o é que é Estado de Direito; o Estado democrático, é Estado de Direito e só sendo-o é que é Democrático.
Chegados aqui, sinto-me com legitimidade de afirmar com toda a segurança académica de que a legitimidade dos actos do Estado promana da Lei constitucional - a CRM.
Sendo que, no dizer do Professor Marcello Caetano "A Polícia é um ramo da actividade do Estado".
E do Código Francês dos Delitos e das Penas, promulgado aos três do Brumário, do Ano IV, "A Polícia é instituída para manter a ordem pública, a liberdade, a propriedade, a segurança individual. O seu carácter principal é a vigilância. A sociedade considerada em massa é o seu objecto".
Sousa Duarte, num dos seus livros publicados em 1881, sobre a Polícia Municipal e Administrativa, definia a Polícia como "cuidado incessante da autoridade a seus agentes pela execução fiel das leis (o sublinhado é meu), pela manutenção da Ordem, pela segurança da liberdade, da propriedade e da tranquilidade de todos os cidadãos".
Estes pequenos extractos do Manual do Prof. Marcello Caetano são esclarecedores da nossa tese - Polícia. Mas como a abundância não prejudica "abundat non nocent", permitam-me que elabore aqui sobre dois principais sentidos em que se utiliza na linguagem corrente a expressão Polícia.
Diz-se por vezes que fulano entrou para a Polícia, ou que foi para a polícia de fronteira, ou de migração.
Ou que a Polícia de Investigação Criminal está aquém da actual demanda criminal e por isso precisa de ser reformada; outras por vezes afirmamos que a Polícia de Intervenção Rápida é muito agressiva, violentou as populações na Munhava (Beira) e no Bairro Incídua (Quelimane), nas últimas eleições autárquicas.
No primeiro caso, a expressão é empregada no sentido de organização: a polícia surge aí como sinónimo de órgão da Administração Pública. É a polícia em sentido Orgânico - ou, noutra formulação, polícia em sentido subjectivo.
No segundo caso, utilizamos a expressão no sentido de ctividade: polícia em sentido material- ou, também pode dizer-se, polícia em sentido objectivo.
É assim que a legitimidade da polícia em sentido subjectivo há-de surgir da Lei Orgânica que a cria como Órgão, como sujeito do poder do Estado, como órgão da administração pública.
Em sentido objectivo ou material, a sua legitimidade há-de ir buscá-la nos poderes funcionais que lhe são devolvidas pela Lei que lhe dá existência em sentido subjectivo ou orgânico.
Para sairmos do mundo da divagação a nossa PRM em sentido subjectivo vai buscar a sua legitimidade na Lei nº 16/2013, de 12 de Agosto, que revoga – Lei nº 19/92, de 31 de Dezembro.
Por sua vez, a legitimidade objectiva ou material há-de ir buscar dentro da mesma Lei no artº nº4, de modo geral.
Mas falando da Polícia como todo um corpo ela organiza-se em ramos e unidades conforme as atribuições específicas. Temos conforme o artº 13 o seguinte:
ORGANIZAÇÃO DA PRM
1. A PRM organiza-se em ramos e unidades de operações especiais e de reserva.
2. São ramos da PRM:
a) A Polícia de Ordem e Segurança Pública
b) A Polícia de Investigação Criminal
c) A Polícia de Fronteiras
d) A Polícia Costeira, Lacustre e Fluvial.
3. São unidades de Operações Especiais e de Reserva;
a) A unidade de Intervenção Rápida
b) A unidade de Protecção de Altas Individualidades
c) A unidade de Operações de Combate aoTerrorismo e Resgate de Reféns
d) e) e f) não têm muito interesse para o nosso tema.
Depois que ficámos sem dúvidas em relação à legitimidade da polícia como sujeito, resta-nos saber quando é que é legítima a sua actuação nas eleições.
Mas como questão prévia temos de responder às seguintes perguntas: Qual polícia? De Investigação Criminal? De Fronteiras? Costeira? De Ordem e Segurança Pública? Da Intervenção Rápida? Ou de outras unidades de Operações Especiais e de Reserva?
E a resposta é; Segundo a Lei 16/2013, de 12 de Agosto, artº 13 e 14, a polícia que tem legitimidade de actuar no período eleitoral é a Polícia de Ordem e Segurança Pública, pois o nº1 do citado artº 14 refere que compete a este ramo da PRM: a) Prevenir a prática de crimes ou outros actos contrários à lei;
b) Proteger as pessoas, bens e instituições públicas.
g) Garantir a observância e o cumprimento das disposições legais que regem a realização de reuniões, manifestações e espetáculos públicos.
Repetindo, a polícia que em termos legais tem legitimidade é a polícia de Ordem e Segurança Pública e não outra. Todavia, da teoria à prática, do formal ao material, vai uma distância. O que nós vemos, quando temos eventos eleitorais é a Polícia de Intervenção Rápida que na prática aparece como protagonista principal tanto da manutenção como da perturbação da Ordem e Segurança dos cidadãos durante as campanhas que antecedem o momento de votação e aquando desse mesmo momento.
A pergunta que se coloca é: com que legitimidade a Polícia de Intervenção Rápida nos brinda com a sua actuação pouco elegante, perante aqueles que são os verdadeiros sujeitos do direito eleitoral – os cidadãos das mais variadas opções políticas?
Como Estado de Direito que nos proclamamos no artº 1 da CRM, teremos de recorrer à Lei para subsumirmos se esta conduta está coberta ou não de Lei, isto é, se é legítima ou não a sua actuação nos momentos eleitorais.
A Lei nº 16/2013, artº 25, 26 e 27, define a Polícia de Intervenção Rápida como unidade de Operações e Missões especiais vocacionada para operações de manutenção e restabelecimento da Ordem pública, em casos de violência declarada, cuja resolução ultrapasse os meios normais de actuação.
Adiante, se pode ler ainda que a legitimidade da intervenção desta unidade especial da polícia há-de promanar da necessidade de garantir a segurança de grandes eventos, o controlo de massas, o combate ao terrorismo, entre outras situações de violência concentrada e de elevada perigosidade, complexidade e risco de insegurança de pessoas e bens, bem como o restabelecimento da ordem quando esta haja sido perturbada de modo grave e especial.
Perante esta definição não rigorosa que se infere da própria Lei pergunta-se: Será a campanha eleitoral interpretada pelas chefias da PRM como uma situação de violência declarada? Ou será um acto de terrorismo? É ou não um acto normal de exercício de um direito pelos políticos e cidadãos, respectivamente?
Quando é chegado o próprio momento da votação vemos um protagonismo aparatoso desta força especial anti-motim e outras situações de perturbação elevada e perigosa da ordem pública. Será que a votação é um motim? Ou é uma situação de elevada perigosidade, complexidade e risco para a segurança dos participantes a este acto cívico? Ou os próprios participantes são ao mesmo tempo beneficiários e sujeitos passivos da acção da polícia?
O que é que justifica tanta violação da Lei por parte da polícia? Por exemplo, o artº 101, nº 1, da Lei nº 7/2013, de 22 de Fevereiro, proíbe a presença de qualquer força armada num raio de trezentos metros, a excepção de um agente, e somente um, "agente da PRM encarregue pela protecção e segurança da mesa da assembleia de voto". As excepções aí salvadas são os tumultos, agressões, violência ou outras situações de perturbação da ordem pública. Porém, em nenhum momento a Lei refere força especial nem se refere à situações, perturbadoras da ordem pública, cuja resolução ultrapassa os meios normais de actuação. Isto é o que reza a Lei. Isto é, o que devia ser por Lei, pois o Estado Democrático, é um Estado do primado da Lei. Todavia, o que vemos é o atropelo reiterado e desusado da Lei e uma impunidade garantida por quem por Lei devia agir oficiosamente.
Temos um Estado do silêncio democrático ou Estado da Democracia do silêncio. Ou somos Estado ou não somos. Estado é uma sociedade politicamente organizada.
Significa que somos uma sociedade que obedece a leis dessa organização política. Ora, quando na mesma aldeia global cada um tem as suas leis, quando cada um tem o alvedrio de obedecer a umas leis e desobedecer a outras por conveniência, própria não somos dignos de nos considerarmos Estado. Somos Estado por força da letra constitucional. Somos um Estado não civilizado no concerto das Nações.
Quando nós fazemos leis e somos os primeiros a desrespeitá-las, conspurcá-las, postergarmo-las, preterí-las por causa de interesses pouco ortodoxos, então, nós não estamos num Estado normal. Num Estado em que impere a força do direito, mas sim o direito da força.
O Estado teima que em fazer o que convém aos seus defeitos, aos seus erros, às suas paixões, aos seus interesses obscuros e inconfessados; um Estado que não sabe qual é o papel da Polícia de Ordem e Segurança Pública e qual é o papel duma polícia de operações e missões especiais, como é o caso da Polícia de Intervenção Rápida; um Estado em que não se sabe se estamos em guerra ou se estamos numa situação de desordem e insegurança públicas ou se estamos em festa por decorrência das eleições, então é caso para dizer que "o Rei vai nú". Esse Estado é um Estado da Indefinição. Por isso, se me perguntares onde estamos, dir-vos-ei que estamos onde antes não estávamos. E se me perguntares para onde vamos, dir-vos-ei apenas que vamos para aonde nem eu sei bem aonde vamos, mas que vamos contra nossa livre e espontânea vontade expressa na Constituição vigente e outras leis ordinárias, tenho a certeza inequívoca.
* professor universitário, ex-Director da Polícia de Investigação Criminal(PIC) e ex-Deputado da Assembleia da República, dissertação apresentada no Seminário Internacional de Avaliação das IV Eleições Autárquicas que teve lugar na última sexta-feira na cidade de Maputo