O Congresso de Pemba e o fim do Político em Moçambique
Quando o Embaixador espanhol, no dia seguinte ao despedimento, por parte do grupo privado SOICO, do chefe da informação, Jeremias Langa, de visita às instalações do mesmo grupo, elogia Moçambique como um país em que domina o pluralismo e a liberdade de informação, ficou claro que a luta pelo retorno duma democracia mais efectiva e menos autoritária tem que ser desempenhado apenas ao nível interno, sem contar com a contribuição dos supostos doadores e da comunidade internacional.
O episódio apenas referido representa o último de uma série que está abalando o mundo político e, de reflexo, a comunicação social em Moçambique. Esta aceleração começou com o Congresso de Pemba por parte da Frelimo, em Setembro, e desaguou numa mudança que já não diz respeito apenas ao partido no poder, mas sim a toda a sociedade moçambicana. Ela pode ser resumida com a seguinte expressão: passou-se duma concepção do poder "diluído" (ou seja, nas mãos das várias alas da Frelimo) a uma de poder "concentrado" (ou seja, nas mãos do actual Presidente da república, Armando Emílio Guebuza, e da restrita elite a ele fiel).
No Congresso de Pemba, Guebuza conseguiu afastar todos os seus supostos opositores internos, empurrando as organizações de massa controladas pela Frelimo do seu lado. Daquela que reune os jovens (OJM) aquela das mulheres (OMM) aos Antgos Combatentes. Personagens relevantes, tais como Luísa Diogo e Manuel Tomé, foram afastados do Comité Político do partido, assim como ministros de peso, a partir do antigo primeiro, Aires Alí, passando por muitos outros e, por último, pelo Ministro dos Transportes, Zucula, cairam estrondosamente e repentinamente, sem uma explicação política clara.
O caso mais recente, relativo ao ministro Paulo Zucula, faltando apenas poucos meses ao fim do mandato de Guebuza (as eleições gerais são previstas para 2014), é um dos mais obscuros. A imprensa não tem aborado a questão mediante uma leitura política, mas procurando explicações bastante complicadas e dedutivas, inerentes aos interesses em jogo e às eventuais "traições" do Ministro nalguns negócios em que estaria envolvido o Presidente da República. Na edição do dia 20 de Setembro, o semanário "Savana" assim faz a sua manchete: "Guebuza refresca Zucula". No interior do jornal, realça-se que o despedimento foi, como aconteceu com os outros ministros que tiveram a mesma sorte, repentino e sem nenhuma explicação, mas tenta-se avançar hipóteses. A mais acreditada tem a ver com um contrato milionário, o relativo ao corredor de Mucuze, necessário para implantar uma ferrovia de 525 km. de Mutarara (Tete) até a cidade da Beira, com o objectivo de escoar o carvão que está a ser extraído no oeste de Moçambique. O Conselho dos Ministros teria optado por uma adjucação directa do projecto (que vale cerca de 3,1 mil milhões de USD) a um consórcio indo-moçambicano que inclui a principal sociedade controlada pela Frelimo, a SPI, e a que Zucula teria-se oposto. Por outro lado, o semanário "Expresso" reporta, no dia 17 de Setembro, que houve demasiada "ambição" e ao mesmo tempo "traição" de Zucula relativamente à figura do Presidente Guebuza. Fontes anónimas citadas por este jornal destacam que Zucula não foi dispensado por incompetência, mas sim porque "meteu a colher na panela controlada pelo seu chefe, neste caso, o Presidente da República".
Tais leituras dizem o seguinte: por um lado, as disputas internas ao partido no poder têm uma componente política irrelevante. Por outro, tudo se joga em volta de negócios bilionários, dos quais a nomenclatura pretende ter o monopólio, de acordo com a hierarquia ocupada na Frelimo.
Isso deixa vislumbrar qual foi a verdadeira natureza do Congresso de Pemba: pouco falou-se de política, mas muito de quem devia e podia dominar os processos económicos no país para os próximos anos. E não resta dúvidas de que o vencedor foi o actual Presidente, Guebuza. Acima de tudo por ele ter conseguido o domínio do partido, tendo sido reeleito Presidente para os próximos cinco anos. Mas sobretudo por ter eliminado não apenas os seus adversários internos, mas a própria política, do horizonte da Frelimo. Assim sendo, as vozes discordantes também foram caladas, passando de tal forma dum modelo de "democracia autoritária" a um de "autoritarismo democrático", em que os mecanismos eleitorais, internos à Frelimo assim como gerais, não passam dum mero formalismo. O facto de o actual Presidente da CNE (Comissão Nacional das Eleições) ter sido proposto não por um dos sujeitos indicados pela lei, pertencentes à sociedade civil, mas sim por um indivíduo singular (o antigo Presidente de mesmo órgão e antigo Reitor da Universidade Eduardo Mondlane, Brazão Mazula), demonstra a inconsistência do aparato legislativo moçambicano, nesta fase extremamente crítica e delicada que o país está atravessando. No entretanto, a comunidade internacional finge de não ver, com o único objectivo de proteger os enormes interesses no carvão, no gas e, talvez, no petróleo, que quase todos os grandes investidores têm em Moçambique.
O silenciamento da comunicação social
Uma das grandes marcas na história recente de Moçambique tem sido a vivacidade da comunicação social. Existem hoje uma dezena de jornais independentes, emissoras televisivas e radiofónicas também autónomas, rádios comunitárias espalhadas por todo o país. Entretanto, a situação efectiva da liberdade de imprensa piorou bastante nos últimos dois anos, e nomeadamente a seguir ao Congresso de Pemba da Frelimo.
A estratégia usada tem sido de dupla natureza: por um lado, o controlo directo da comunicação social pública, ou seja, do diário “Notícias”, do semanário “Domingo”, da emissora televisiva mais antiga e difusa do país, a TVM, e da própria Rádio Moçambique. Por outro, o controlo indirecto da comunicação social independente, com vários meios: aquisição, por parte de sociedades anónimas mas controladas pela Frelimo, das quotas de maioria desses jornais (como é o caso do semanário “Público”), infiltrar pseudo-colunistas nesses órgãos (cuja lista foi recentemente publicada pelo “Savana”) para diluir o seu potencial crítico, cortar os anúncios das sociedades públicas, tais como EDM, MCEL e outras, de maneira a reduzir as capacidades financeiras da imprensa privada e obrigá-la a tornar-se mais “obediente” ou a fechar de vez.
Mas o nível máximo de ingerência do poder político nos assuntos relativos à comunicação social privada é o caso Jeremias Langa e, no geral, da SOICO TV. Apesar das pressões e até ameaçs recebidas, a redacção da STV decidiu fazer uma cobertura cabal das duas manifestações violentas que agitaram a capital moçambicana, Maputo, no dia 5 de Fevereiro de 2008 e nos dias 1 e 2 de Setembro de 2010. Em particular, neste último caso, Jeremias Langa, na entrevista do dia 19 de Setembro deste ano, resistiu às pressões, provenientes directamente do partido Frelimo, e foi a frente com o programa, cuja emissão durou cerca de oito horas, e graças ao qual todo o país ficou a par daquilo que estava acontecendo nas ruas de Maputo. A seguir ao episódio, o grupo SOICO deixou de receber a publicidade das sociedades públicas (como vê-se claramente analisando o jornal “O País” dos últimos dois anos) e de ser convidado para participar nas “Presidências abertas”, onde o Chefe de Estado vai visitar e fazer auscultação dos problemas dos seus concidadãos nas várias províncias do país.
Em Junho deste ano, todavia, o grupo SOICO é readmitido às presidências abertas, mas o jornalista que devia acompanhar esta actividade presidencial tinha sido escolhido pela próprio equipa do Presidente e não pelo director da informação. Além disso, Jeremias Langa teve momentos de fortes contrastes com o PCA do grupo, pois a linha editorial estava a ter um rumo diferente: sugeria-se que a postura crítica adoptada até então (e que tinha credibilizado o jornalismo quer da STV quer do jornal “O País”) tivesse de sofrer significativas alterações, em prol dum relacionamento menos conflituoso com o poder político. Uma tal opção, que negava, de facto, 11 anos de jornalismo comprometido e investigativo, levou a fazer com que Jeremias Langa, depois do seu adjunto, José Belmiro, tivesse que deixar o cargo que ocupava, embora com a garantia de poder continuar com dois programas televisivos de grande audiência e impacto em total autonomia. Um compromisso que apenas atenuou o sentido das medidas tomadas, e que aproxima inevitavelmente o grupo SOICO à nomenclatura moçambicana. Como demonstra o facto de os anúncios das empresas públicas no jorna “O País” estar paulatinamente de volta.
No que diz respeito à imprensa pública, os jogos foram ainda mais fáceis. As estratégias adoptadas também foram diferentes, mas todas visando o mesmo objectivo: parar com as críticas, como claramente manifestou o próprio Presidente Guebuza em várias circunstâncias, inclusive no recente Congresso do OJM (ver “Domingo”, 15 de setembro de 2013).
Primeiros sinais de que a comunicação pública devia estar completamente amordaçada por parte do regime deram-se já no princípio de 2011. O mais destacado jornalista da TVM, Elio Jonasse, que costumava ler o noticiário da noite e conduzia vários programas de opinião, por causa da sua postura frontal e profissional para com representantes do Governo foi obrigado a deixar a profissão jornalística, trabalhando actualmente no Banco de Moçambique. O clima, na TVM, tornou-se gradualmente insuportável. Jornalistas por mim entrevistados no mês de Setembro, e que aceitaram falar sob anonimato, declararam que a TVM não tem passado, nos últimos meses (aproximadamente após o Congresso de Pemba), de mera emissora propagandística do partido no poder, e nomeadamente da figura do Chefe de Estado. Notícias ou reportagens por eles feitas são geralmente censuradas ou totalmente ignoradas pelos dirigentes da emissora, principalmente quando se trata de abordar assuntos inerentes ao maior partido de oposição, a Renamo. Uma entrevista de cerca de duas horas com Dhlakama, o leader da Renamo, foi censurada e nunca chegou de ser transmitida. Este elevado nível de frustração desagua, por vezes, na entrega da notícia aos colegas da comunicação social privada, os quais têm a possibilidade de publicar aquilo que os órgãos controlados pelo Estado não conseguem tornar público. Esta prática foi confirmada mediante entrevistas feitas em Maputo, junto a jornalistas da comunicação social pública assim como independente, tendo os dois como o único objectivo a procura da verdade e a tentativa de pautar pelo profissionalismo, cuja prática tornou-se impossível nos órgãos controlados pelo Estado. Esta forma de resistência a um poder que tende a fechar qualquer espaço de discussão é a última que a classe dos profissionais da comunicação espontaneamente encontrou para conseguir informar os seus concidadãos daquilo que se passa no mundo político e económico local.
O jornal “Notícias” teve a mesma sorte que a TVM. O seu antigo director, Rogério Sitoe, foi dispensado em Junho deste ano, depois de ter assumido as funções em 2003, substituindo Bernardo Mavanga, actual Assessor jurídico do jornal. Este acto foi uma clara consequência da nova linha do “poder concentrado” ao invés que “diluído” pautada pela Presidência. Como tentou explicar Sitoe numa entrevista que nos concedeu no dia 19 de Setembro deste ano em Maputo, a sua aposta sempre foi de fazer um jornalismo com um pouco de propaganda, ao passo que agora está acontecendo exactamente o contrário. Após a sua saída da direcção, este diário eliminou qualquer sentido crítico, tão que durante as primeiras 16 edições do “novo curso” a manchete sempre trazia a foto do Presidente Guebuza. Este hábito continua até hoje, descredibilizando ainda mais um jornal que, com Sitoe, tentou pelo menos manter alguns espaços de liberdade, por exemplo mediante rúbricas tais como a das “conjecturas”, as cartas dos leitores ou os próprios editoriais do director.
Vale a pena recordar, a este propósito, os dois editoriais escritos por Sitoe ao longo do Congresso de Pemba, e que certamente chamaram a antenção do Presidente da República e da restrita elite dos seus conselheiros (acima de tudo do seu actual porta-voz, Edson Macuácua), por ter dado pouco espaço à proeminente figura de Guebuza, avançando críticas implícitas contra a sua maneira de gerir o partido. No editorial do dia 28 de Setembro, Sitoe defende que a Frelimo está subdividida em alas, e que isso não só seria normal, mas faria parte da tradição histórica deste partido. Uma tal situação estaria a testemunhar “uma necessidade dialéctica de movimento e crescimento”. Apesar de Guebuza ter conseguido quase 99% dos votos da assembleia, Sitoe destaca o fato de “membros históricos deste partido a clamar por maior diálogo interno”, dando continuidade a uma “maior liberdade de imprensa”, que estaria sob risco de retrocessos. No editorial do dia 5 de Outubro, recordando a assinatura dos acordos de Roma entre Frelimo e Renamo, ocorrida no dia 4 de Outubro de 1992, Sitoe realça a necessidade e a importância vital do diálogo entre as partes, num momento em que a “ala dura” da Frelimo estava prevalecendo no que diz respeito aos pedidos da Renamo, finalizados a encontrar soluções pacíficas para novas problemáticas que este partido continua, até hoje, a colocar, numa conversa entre surdos. O facto de Sitoe ter feito coberturas “abertas” dos últimos acontecimentos, dando espaço mesmo às razões da Renamo e, sobretudo, da oposição interna à Frelimo (a partir da figura do antigo Presidente, Joaquim Alberto Chissano), valeu-lhe o afastamento do cargo de director e a nomeação como Assessor do CDA do jornal. A mesma sorte que tinha tocado ao seu predecessor, Bernardo Mavanga, actual Assessor jurídico do grupo Notícias s.r.l..
O “autoritarismo democrático” e a imprensa em Moçambique
A constante pressão exercida junto à comunicação social tem desvendado uma realidade que parecia constituir apenas uma lembrança da altura do regime a partido único, quando o responsável ideológico da Frelimo, Jorge Rebelo, ditava a linha editorial dos órgãos de comunicação, bypassando na integra o governo e o ministro competente.
O processo de lenta mas progressiva abertura democrática que tinha começado a afirmar-se em Moçambique a partir do princípio dos anos Noventa parou, e os principais sinais deste cenário podem ser resumidos nos seguintes pontos:
1. A concentração do poder económico e político nas mãos do actual Chefe de Estado e dos seus mais directos colaboradores;
2. O aniquilamento dos adversários internos, incapazes de opor-se abertamente às decisões do Chefe de Estado e Presidente da Frelimo;
3. O total arbítrio e a falta de explicação pública no que diz respeito aos despedimentos e nomeações de todos os cargos relacionaods com a esfera governamental, dando azo a “fofocas” que tornar ainda mais turvo o ambiente político moçambicano;
4. O papel irrelevante do Parlamento, que quase que não discute de assuntos e leis julgados incómodos, tais como (de recente) tem acontecido em relação à lei sobre acesso à informação;
5. A ideia de que o livre exercício da crítica só prejudica a actividade do Governo e,portanto, tem que ser limitada e até banida;
6. Consequentemente, há uma tentativa bastante evidente e aberta de silenciar a comunicação social, a governamental de forma directa, a privada mediante pressões de vária natureza junto aos próprios órgãos, a editores ou a jornalistas singulares;
7. Fazer com que a questão relativa à qualidade da democracia e da participação dos cidadãos junto à tomada de decisões estratégicas para o país passe a ser considerada, a partir da comunidade internacional, como assunto secundário, privilegiando os negócios bilionários e, portanto, a vertente económica do desenvolvimento.