"Deus criou as pessoas para amarmos e as coisas para usarmos, porque então amamos as coisas e usamos as pessoas?"



quinta-feira, 12 de abril de 2012

“Os pais demitiram-se do papel de educar os seus filhos”

José Castiano
De acordo com o docente e filósofo José Castiano.
José Castiano considera que os últimos 20 anos são mais de “ócio do que de trabalho.  Portanto, a indústria do ócio desenvolveu-se muito. Tu podes ficar sentado todo o dia e teres a pretensão de estar ocupado”.
O professor José Castiano juntamente com outros dois académicos, nomeadamente, Severino Ngoenha e Manuel Guro, publicaram um livro denominado “o barómetro da educação básica em Moçambique”, no qual culpam os fazedores de políticas educativas do actual estágio da educação. quais foram os pressupostos?
Nós, ao analisarmos o debate e o discurso sobre qualidade da educação, principalmente básica em Moçambique, olhámos para aquilo que são as referências para medir essa qualidade e, rapidamente, chegamos à conclusão de que são agências internacionais como a UNESCO e DFID que definem os termos sobre qualidade da educação e não estudos conduzidos por moçambicanos. Isso justifica a nossa posição de que o debate sobre a qualidade da educação está poluído. O segundo ponto é que no debate estão elementos quantitativos do ensino e não qualitativos. Então, quisemos sair desse debate, preferindo apresentar uma série de instrumentos que nos podem ajudar a qualificar esse debate, lendo o que a sociedade pode esperar da educação.
Um dos pilares apresentados no livro tem a ver com o “saber saber”. O que esta proposta carrega consigo?
O caminho para saber passa pela escrita e leitura e estudos mostram que a criança moçambicana aprende a ler e a escrever muito tarde em relação a dos outros países vizinhos. Então, o saber neste sentido tem como pressupostos ensinar a criança em idade própria a ler e a escrever, e isso não tem acontecido.
O estudo conclui, também, que há uma percepção geral por parte dos cidadãos de que o ensino é de má qualidade se comparado com o tempo colonial ou mesmo nos primeiros anos de independência...
As crianças no tempo colonial ou mesmo nos primeiros anos da independência, que estavam na escola, sabiam ler e escrever muito cedo em classes próprias. Hoje encontramos uma criança da 6a classe que não sabe ler nem escrever. então, temos que repensar nas nossas estratégias de ensinar a ler e a escrever (...) encontrámos no ensino universitário pessoas que não sabem escrever. Então, temos que voltar à base e isso é um dos espíritos do saber (...). Por outro lado, há outras competências neste domínio, como, por exemplo, aumenta o saber escutando. Ensinar a criança a escutar é importante. No âmbito desse saber, nós não só paramos no saber científico, que é importante, mas também em termos de competências individuais, que a criança deve ter para poder progredir.

Qual é a análise que faz sobre a sociedade e sobre a nossa classe governante no capítulo do “saber escutar”?
A nossa sociedade escuta muito pouco. Nós somos professores de filosofia (...), se me pergunta o que é crítica, há dois aspectos que quero apontar: para nós, crítica é uma atitude em que a pessoa vê o que acontece não como uma fatalidade, mas sim como uma alternativa, isto é, tudo pode-se fazer de uma outra forma, temos um sistema político que pode ser construído de uma outra forma (...), isso é o primeiro aspecto. O segundo, crítica significa oferecer alternativas de interpretar fenómenos. Há um fenómeno que é a baixa qualidade de educação, que tem várias interpretações e nós estamos a tentar interpretar de uma outra forma, a oferecer a sociedade uma outra forma de ver esse fenómeno e isso implica reorganizar o debate com novos conceitos.
Sente que os intelectuais estam a “pregar no deserto”, como se diz em linguagem bíblica?
Não! Eu penso que não. A nossa experiência é que não “pregamos no deserto”. Temos pessoas que ouvem, escutam e sentimos que as abordagens que trazemos, de alguma forma, têm influenciado naquilo que é o traçar de políticas, tanto por parte do ministério, quanto aos partidos. Neste momento, estamos quase, quase em pré-campanha, e os partidos estão atentos a esses estudos e escutam de forma política.
Voltando concretamente para essa questão de política e no factor crítica, um dos principais elementos de crítica que o estudo aqui apresenta tem a ver, de facto, com o défice existente no sistema de educação, de formação de professores com as devidas competências necessárias para formar crianças. Quais são os pressupostos que vos levam a concluir isso?
Desde a independência a esta parte, tivemos mais de 20 sistemas de formação de professores e não tivemos tempo suficiente para consolidar um sistema. Quando falo de sistema de formação de professores, falo da formação inicial e na formação contínua. Houve grandes mudanças paulatinas que foram feitas, e que influenciaram na qualidade de formação de professores. Então, a formação de professores sofreu transformações que nem sempre foram baseadas em pressupostos, em estudos aprofundados que justificassem por que se abandona um sistema e outro. Esse é um aspecto, o outro é que na formação de professores tem sido dado ênfase a aspectos pedagógico-didácticos mais do que a aspectos científico-técnicos da área em que o professor vai ensinar (...), teremos que consolidar a nossa experiência na área de formação, primeiro, e, segundo, temos que investir muito no conhecimento técnico-científico.
Outro elemento interessante tem a ver com a relação entre escola, alunos e pais e encarregados de educação. Diz o estudo, claramente, que os pais não têm acompanhado esses alunos nos processos educativos. Qual é a análise que faz, principalmente nas zonas urbanas, onde é normal, em reuniões de turmas, os pais mandarem seus empregados?
Em geral, os pais demitiram-se da tarefa de educar e as razões são diferentes. Os ecossistemas que encontrámos em Moçambique, que são relevantes para a análise educativa, são três: o ecossistema urbano de cimento; o ecossistema urbano dos subúrbios; e o ecossistema rural, e as razões da demissão dos pais nestes três ecossistemas são muito diferentes nas zonas urbanas. Por um lado, é a ocupação, mas, por outro, é esta característica moderna de atribuir a instituições a responsabilidade total sobre as pessoas. Portanto, a escola parece ter a responsabilidade total, então os pais demitiram-se, fora do facto de, com essas mudanças curriculares que eu já mencionei, a forma de ensinar a escrever, a contar, etc., foi mudando também e muitos país estão ultrapassados e não conseguem ajudar os seus filhos. Nas zonas suburbanas, é a questão da pobreza. São zonas, normalmente, habitadas por pais que passam a vida no sector informal desde manhã até à noite para ganhar o pão, então, exaustos não têm condições para ajudar a criança, fora da falta de condições para ajudar em termos de infra-estruturas de leitura e escrita em casa, que são importantes. Nas zonas suburbanas, é mesmo o factor analfabetismo. Nós encontrámos nas escolas rurais onde estivemos muita participação dos pais nos conselhos de escola, das mães principalmente. Mas é uma participação limitada, que se resume em ir à escola, informar-se sobre o que se passa, e não podem fazer uma participação curricular, um acompanhamento na avaliação. Então, há uma demissão geral dos pais na sua responsabilidade para com a evolução educativa das suas crianças.
Onde é que entra aqui o factor televisão, por exemplo, nesse processo de educação, ou seja, até que ponto a televisão acaba prejudicando a formação das pessoas?
Como filósofo, posso dizer que os últimos 20 anos são mais de “ócio” do que de trabalho. Portanto, a indústria do “ócio” desenvolveu-se muito. Tu podes ficar sentado todo o dia e teres a pretensão de estar ocupado. Então, isto faz com que a imagem seja mais atractiva do que a escrita. Eu não digo que a televisão é má, ou que os meios de informação com as novas tecnologias, os vídeos são maus. Mas é mau o uso que se faz. Temos que conseguir inverter que esses meios disponíveis para as pessoas sejam também educativos. Nos países que têm muita tradição nisso, certos programas só passam numa determinada hora....
O segundo (...) tem a ver com o saber fazer, essencialmente a cultura de trabalho. Dizia que os últimos 20 anos foram de “ócio”. O que é a cultura de trabalho já que nos últimos tempos esse discurso foi apropriado pelos políticos e, se calhar, acabou sendo degenerado? como cientistas sociais, como avaliam isso? como é que se faz a cultura de trabalho?
Resumindo, posso dizer que a cultura de trabalho é saber que tudo o que você tem e que almeja tem que provir do trabalho, da sua entrega como pessoa. É uma cultura em que não se inventa, não se procura novos meios para alcançar a riqueza, uma casa, comprar um carro. Nós sentimos, nos últimos tempos, que um dos problemas que a educação tem é não incutir  já desde a escola primária essa cultura de trabalho. O trabalho tem valores: o afinco, a honestidade, zelo profissional. Portanto, estes elementos são transmitidos na escola e de uma forma simples, sem precisar dizer às crianças que precisam ter afinco ou zelo profissional. Mesmo no processo de avaliação, vemos que as nossas crianças podem utilizar muita cópia ou plágio, mas isso mostra que ele quer alcançar uma passagem sem trabalhar.
Dizem no estudo que o actual ensino técnico-profissional é como o ensino geral. Porquê?
Vou-lhe contar uma história, que é hipotética. Quando houve muito desenvolvimento de escolas técnicas nas cidades de Maputo e Beira, principalmente de industriais, aumentou também o número de roubo de carros. Houve troca de peças, porque por detrás deste desenvolvimento na formação técnico-profissional não estavam os valores. E quando se diz que no tempo colonial as escolas de artes e ofícios era boas, esquecem que na entrada dessas escolas estava um termo bíblico, que antes da pessoas começar a aprender a trocar os parafusos, conhecimentos econométricos duma formação profissional, primeiro tinha que ter os valores que eu disse antes, que é o afinco, honestidade, etc., para depois não trocar as peças. Então, neste sentido, identificámos que temos que fazer escolas profissionais, mas, por trás disso, temos que tomar atenção que a técnica é um instrumento do homem e ela está depois da cultura. Mas indo à sua pergunta, temos hoje menos escolas técnico-profissionais do que as de ensino geral. Ultimamente, desenvolveu-se muito o ensino geral que o técnico-profissional. em consequência, não temos pessoas para preencherem os lugares que as novas áreas da economia exigem. Então, o nosso futuro está hipotecado, porque não temos pessoas que vão trabalhar nas minas, nos petróleos. Em Tete, quantos moçambicanos estão nas áreas técnicas de facto? A esta pergunta a educação deve responder, aumentando o número de escolas, melhorando a qualidade de formação-técnico profissional. 

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