Dom Jaime, arcebispo emérito da Beira, faz-nos voltar ao passado e desvenda os bastidores da paz no país.
“O País” traz, nesta edição, uma entrevista com Dom Jaime, arcebispo emérito da Arquidiocese da Beira. Dom Jaime foi um dos principais negociadores da paz de que desfrutamos há 20 anos .
O que teria levado a igreja católica a envolver-se na procura de paz para Moçambique?
A Conferência Episcopal de Moçambique entendeu que a resistência liderada pela Renamo incitava os moçambicanos à revolta, expandido por todo o país a guerra civil ou de desestabilização, como queira, isto a partir do início da década 80. Esta resistência contava com o apoio de forças internas, neste caso, os próprios moçambicanos, e externas. Estou a referir-me àquele grupo de países ou pessoas que pretendiam criar a chamada África branca, ou seja, os que não consentiam ligação com países comunistas.
Podemos voltar à intervenção da igreja católica no processo de paz em Moçambique?
A guerra civil foi ganhando consistência, expandia-se pelo país todo e a nossa sociedade estava a ser destruída. A segurança dos cidadãos tornou-se problema tanto nas cidades assim como nas zonas rurais. A unidade nacional era uma cantiga, e o governo da Frelimo tinha perdido o controlo da soberania nacional, pois, aos poucos, a Renamo ia controlando um vasto território nacional, onde o governo revolucionário não tinha nenhum poder. Era um governo descontrolado, com uma soberania dividida e com matanças e choros por todos os lados. Para a nossa felicidade, a Frelimo reconcilia-se com as instituições religiosas em 1982. Foi um grande abertura para os caminhos da paz.
Mas onde e quando entra a igreja católica no processo de paz?
Bem, tanto a Igreja Católica como o Conselho Cristão de Moçambique defendiam junto do governo a política de reconciliação para com a resistência. Dado o nosso insucesso, a Conferência Episcopal de Moçambique criou, em 1987, duas comissões. Uma tinha a responsabilidade de continuar a escrever cartas pastorais, que era a forma mais comum para nos comunicarmos com o resto dos moçambicanos, e a outra comissão teve a missão de procurar a Renamo, para lhe dizer que a solução das suas apreensões não seria com recurso a tiros, mas sim com o diálogo. Eu, que era o presidente da comissão de justiça e paz, passei a chefiar a segunda comissão, e, portanto, fiquei com a responsabilidades de procurar a Renamo, juntamente com o então cardeal da cidade de Maputo, Dom Alexandre.
Como localizou a Renamo, tendo em conta que estava nas matas?
Não foi fácil. Decidimos começar por procurar os seus representantes fora do país. percorremos Tanzania, Malawi, Quénia, Portugal, Itália e até Estados unidos da América durante um ano, sem sucesso. Importa referir que, numa das minhas viagens à busca do representante da Renamo em Portugal, que na altura era o já falecido Ivo Fernandes, fui abordado por um político muito desenrascado, o Máximo Dias, que me convidou para um restaurante onde a iluminação era ténue. Acredito que ele estava com medo. Acabei aceitando o convite, e ele disse que estava a representar Ivo Fernandes. Por desconfiança, não abordei a minha preocupação. Limitámo-nos a tomar um chazinho e abordámos a questão da Renamo de forma muito superficial. Na mesma altura, Dom Alexandre estava nos estados Unidos da América à procura de Artur Vilanculos, que era representante da Renamo, mas sem sucesso. Artur Vilanculos orientou-lhe a procurar o governo do Quénia. Já no Quénia, Dom Alexandre foi orientado pelo executivo do então presidente Arap Moi a retornar àquele país com mais pessoas, se efectivamente estava interessado em encontrar -se com a Renamo.
Como é que vai a Gorongosa?
Em Novembro de 1988, saí da Beira rumo a Lesotho. De Lesotho parti numa avioneta com destino desconhecido. Saímos às 15h00 e só chegámos às 18h00 ao destino. Já no ar, um jovem piloto perguntou-se se sabia qual era o meu destino. Apenas afirmei que ia ao encontro de Afonso Dhlakama. Ele pôs-se a rir e, sinceramente, nunca entendi. Aterrámos numa pista deserta e, no fundo da mesma, estava um outro avião relativamente maior. O meu jovem piloto disse: “Senhor Arcebispo, entre naquele avião”. Entrei, e dentro do avião havia apenas um pequeno espaço para eu me sentar. Estava tudo ocupado com mantas, bebidas, alimentos de diversa natureza. Cerca das 19h00, saímos na mesma escuridão.
Qual era o destino?
Apenas disseram-me que íamos a Gorongosa. Durante 30 minutos, o avião sobrevoou o mar e, de repente, fez um desvio. Lembro-me que foi num dia de lua cheia, e, como o avião estava a voar à baixa altitude, notei que, gradualmente, estávamos a entrar em florestas cada vez mais densas. Aterrámos numa pista onde vários guerrilheiros empunhavam tochas em fila nas extremidades da pista a fim de facilitar a aterragem do avião. Minutos depois, ouvi o roncar de uma moto de grande cilindragem. Era Afonso Dhlakama. Todo sorridente, jovem na altura, esticou a sua mão e disse: “Boa noite senhor Bispo. Respondi, todo trémulo. Virou-me as costas e vi-o a dialogar com os seus guerrilheiros. Não entendi nada, nem me preocupei. Retornou ao meu encontro e ordenou-me que fosse com ele na moto, tendo de seguida me pedido para lhe segurar bem. Fi-lo, pois não estava interessado em cair. Arrancámos e seguimos um caminho em zigue-zague no meio de muitas árvores. Cerca de 10 minutos depois, chegámos a um local onde havia muito mais guerrilheiros e várias fogueiras. Em redor, diversas infra-estruturas destruídas e equipamento bélico destruído. Dhlakama levou-me a um alpendre feito de capim e barro, também com uma fogueira no meio. Não havia energia.
Como o encarou?
Eu estava aflito, não sabia como iniciar a conversa. Não sabia como ele reagiria à nossa proposta de diálogo, de negociações à busca de paz. Para a minha felicidade, foi ele mesmo que iniciou a conversa para o lado que eu pretendia. Perguntou-me se eu tinha notado a destruição em redor, e respondi que sim. Perguntou-me se a luz eléctrica não me fazia falta, também respondi sim. Depois disse-me que não tinha comida, muito menos um café para me servir, porque não havia. Dhlakama disse: “Estamos a sofrer e cansados desta guerra. Queremos dialogar com a Frelimo e pedimos a mediação da igreja”. Respirei de alívio. Estava dado o primeiro e importantíssimo passo rumo à paz em Moçambique. Discutimos as condições, que passavam necessariamente pela escolha do local das conversações e as pessoas que estariam envolvidas no processo. Ficou acordado que o encontro seguinte seria em Nairobi, em Fevereiro de 1989. Parti de regresso a Beira, via África de Sul, quando eram cerca de duas horas de madrugada.
No encontro de Nairobi, Dhlakama apareceu?
Não, mas os seus representantes estavam lá. Importa referir que, depois do primeiro contacto com Dhlakama, o presidente Alberto Chissano dispensou a Igreja Católica no processo e envolveu de forma directa os seus homólogos do Zimbabwe e do Quénia. Sei que, no encontro de Fevereiro, nada de concreto foi acordado. Foi agendada uma outra reunião para Agosto do mesmo ano. Também não trouxe bons resultados. Robert Mugabe chateou-se, porque estava a gastar muito dinheiro, sem sucesso, e pediu ao presidente Chissano para voltar a convidar a igreja católica para estar no processo. Retornámos, e mesmo sem ser diplomatas iniciámos uma séria de diplomacia no sentido de convencer a Renamo a avançar com as negociações sem desconfiar. Mas acontece que o presidente Chissano estava a mostrar resistência para o início das negociações.
Como conseguiram convencer o presidente Chissano?
Usámos diplomacia que ele não entendeu. Fui à Itália e pedi ao Vaticano, assim como ao governo italiano, para aproximarem ao então presidente norte -americano Jorge Bush(pai), no sentido de apelar ao nosso presidente a dialogar com a oposição. Como os EUA são uma potência mundial, acreditámos que o apelo de Bush seria uma especial ordem para Chissano. Funcionou. O presidente Chissano anunciou, a partir de Washington, em finais de 1989, que estava aberto ao diálogo.
E como a Renamo reagiu?
De forma satisfatória, mas levanta-se, então, um outro problema. O local das negociações. A Frelimo propôs Malawi; a Renamo recusou, alegando que a SNASP circulava à vontade naquele país, o que seria um risco para ela. A Renamo propôs Portugal; a Frelimo recusou, alegando que havia muitos descontentes que fugiram de Moçambique e que as negociações seriam minadas. A igreja voltou a entrar em cena. Fomos pedir socorro ao Vaticano e foi identificada a Comunidade de Santo Egídio.
Constou-nos que Afonso Dhlakama esteve na Comunidade de Santo Egídio, antes do inicio das negociações?
Esteve, realmente, em Fevereiro de 1990. E agora recordo-me de um episódio que criou muito embaraço. Afonso Dhlakama não tinha passaporte. Foi muito difícil fazê-lo viajar, mas a comunidade de Santo Egídio usou as suas influências junto do governo italiano e conseguiu-se um documento para ele viajar dentro da Itália e noutros pontos da Europa.