"Deus criou as pessoas para amarmos e as coisas para usarmos, porque então amamos as coisas e usamos as pessoas?"



segunda-feira, 12 de setembro de 2016

SELO: Jovem morre nas mãos da Polícia que me coagiu a destruir provas documentais - Por Emildo Sambo

Vozes - @Hora da Verdade
Escrito por Emildo Sambo  em 12 Setembro 2016
A Polícia da República de Moçambique (PRM), concretamente a de (des)Protecção, continua a desviar-se da sua finalidade pública, e enveredar pelo abuso de poder e de autoridade. O expoente máximo desta conduta intimidatória e vergonhosa aconteceu o último sábado (10/09/2016), no bairro de Bagamoyo, em Maputo, onde vivo.
Passavam poucos minutos das 16h00, quando ouvi disparos intermitentes. De repente, vi mulheres e crianças em fuga desordenada e, nalgumas vezes, desorientadas à procura de refúgio para escaparem de eventuais balas perdidas.
Devido ao medo, porque a situação era realmente de meter pavor, algumas senhoras saíram de casa quase de tronco nu. Outras ainda, com uma mão tentavam cobrir os seios e com a outra seguravam os filhos. Isto não devia ter passado despercebido aos olhos daqueles que promovem a guerra, para verem o quão o povo sofre...
Porque eu ainda não percebia nada, não obstante os tiros, perguntei à pobre mulher o que se passava e qual era a razão da fuga, mas fui literalmente ignorado.
Deduzi que a situação era séria e continuei a caminhar, mas também assustado. Depois de alguns passos desemboquei num mercado improvisado e bastante movimentado, que funciona sem quaisquer regras nem condições para ser considerado como tal, no mesmo bairro onde moro. Vi uma força policial, incluindo à paisana, bem armada e fazendo-se transportar em três viaturas. Na altura, apurei que um jovem, supostamente condutor ilegal, estava a ser perseguido. A acção parecia daquelas que visavam capturar um perigoso cadastrado, mas neste caso tratava-se de um mecânico humilde que vivia às custas do seu suor.
Mesmo que se tratasse de um automobilista sem carta de condução, conforme a primeira informação que me foi disponibilizada pelas pessoas que presumivelmente tinham acompanhado tudo desde o começo, para mim não se justificava tanta polícia, sobretudo aos tiros num bazar, onde, por conseguinte, um jovem electricista ficou ferido na perna direita por uma bala perdida.
Todos os agentes da Lei e Ordem deviam ter domínio rígido em matérias de primeiros socorros para evitar o que se viu naquele sábado. Se não fosse a gritaria da população, que receava a morte do cidadão ferido no membro inferior por perda excessiva de sangue, a Polícia, visivelmente atabalhoada, teria demorado uma eternidade a tentar usar preservativos como luvas – como se viu – para poder segurar os farrapos com os quais pretendia estancar o sangramento.
Morte por desleixo
Não se sabe ao certo por que carga de águas um contingente da Polícia pôs-se a caçar alguém que, infelizmente, acabou morto como um cão nas proximidades da sua casa, após ser atingido por vários disparos à queima-roupa. Trata-se de Rafito, como era carinhosamente tratado pela família e pelos amigos.
O malogrado, parente de uma família que tem vindo as enterrar os seus membros, um atrás do outro, permaneceu mais de meia hora a estrebuchar no quintal de um morador, com as tripas quase todas fora do abdómen e a misturarem-se com areia. A vítima não teve pronto-socorro por negligência da própria Polícia, que dissimuladamente tentou ignorar o cidadão em estado de total agonia.
Dissimuladamente porque os policiais que rasgaram a barriga do jovem a tiros, a ponto de as tripas desprenderem-se do devido lugar, parece terem não comunicado o facto aos restantes colegas, o que foi descoberto por populares quando o contingente se preparava para abandonar o local.
E consta que dono da casa onde o jovem foi regado de balas acompanhou tudo, mas quando tentou impedir que a vítima fosse morta no seu quintal foi ameaçado pelos próprios policiais. A mim não surpreende esta conduta, pois a arrogância e o uso excessivo da força por estes senhores já se tornou um modus operandi de causar nervos à flor da pele e de ranger os dentes.
O desinteresse da Polícia em relação à saúde do jovem voltou a ser de tal sorte repugnante quando um carro com a chapa de matrícula PRM–01–2–70 transportou a vítima para o Hospital Central de Maputo (HCM), onde não chegou com vida.
Abuso de autoridade
Já era quase fim do dia, quando fui agredido e algemado por um agente da Polícia à paisana, em conluio com os seus colegas (todos não identificados, pese embora as regras da sua actuação determinem o contrário), por ter captado imagens de um minibus que esteve na origem da morte do jovem em alusão.
Que há polícias que não respeitam a nossa actividade e arrogam-se o direito de nos oprimir a seu bel-prazer, uma vez deter armas sob o disfarce de uma autoridade (mal exercida), é um facto. Mas o que eu não esperava é que os agentes da Lei e Ordem podiam ficar deveras excitados por causa de imagens cujo conteúdo desconheciam.
A Lei no. 18/91 (Lei de Imprensa) é clara em relação ao exercício do jornalismo em espaços públicos e determina que o jornalista goza dos seguintes direitos no exercício da sua função:
a) Livre acesso e permanência em lugares públicos onde se torne necessário o exercício da profissão;
b) Não ser detido, afastado ou por qualquer forma impedido de desempenhar a respectiva missão no local onde seja necessária a sua presença como profissional de informação, nos limites previstos na lei e;
c) Recusar, em caso de interpretação ilegal, a entrega ou exibição de material de trabalho utilizado ou de elementos recolhidos. Foi nestes termos que me posicionei o no local dos acontecimentos. Porém, não obstante eu estivesse, na circunstância, devidamente identificado, a Polícia, sempre, dona da razão agitou-se, agrediu-me fisicamente como forma de mostrar o poder que detêm sobre os indefesos, confiscou os meus telemóveis, o crachá e algemou-me.
Em seguida fui transportado até 16ª esquadra, onde fui mantido minutos em pé, ainda algemado, à porta das instalações e submetido a um interrogatório ridículo, que visava saber qual era a finalidade das imagens que captara e por que motivo não me apresentei à Polícia antes de começar a fotografar. Até parece que, alguma vez, a Polícia consentiu que fosse retratada e fotografias ou permitiu filmagens enquanto maltrata o povo!
Fiquei livre das algemas quando já era para apagar as imagens sob o olhar atento de um policial à paisana. Assim, a triste história do jovem que morreu nas mãos da Polícia ficou sem prova documental. A Polícia tem, agora, tudo a seu favor e poderá até forjar provas contra o finado como tem acontecido a muitos compatriotas, que mesmo não sendo delinquentes acabam como tal e, injustamente, privados de liberdade.
Coitado do jovem, que morto, a sua honra poderá ser manchada sem direito a auto-defesa...
Por Emildo Sambo

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