"Deus criou as pessoas para amarmos e as coisas para usarmos, porque então amamos as coisas e usamos as pessoas?"



quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Política moçambicana privilegia bens materiais e não cria utopias

 
Com mais de 20 anos na Educação e mais de 15 estudos nas ciências sociais, José Castiano faz o retrato do ensino superior e da política no país
A grande tarefa dos docentes universitários e da instituição universitária é contribuir através da produção do conhecimento e tecnologia que possam fazer diferença na sociedade moçambicana. Quem assim o diz é o filósofo e docente universitário com larga experiência, José Paulino Castiano, que, na entrevista que se segue, fala do papel e dos desafios do ensino superior, em particular da Universidade Pedagógica (UP).

De que forma o pensamento científico contribui para que haja a consolidação da democracia?
O que há de comum entre  democracia e ciência é que são actividades que põem no centro o pensamento do indivíduo. A ideia de uma democracia que tem como possibilidade um indivíduo eleger com base na sua consciência é a mesma ideia que norteia o pensamento científico.

A democracia em Moçambique tem sido ameaçada de forma recorrente. De que forma o conhecimento científico ou as universidades podem contribuir para o alcance da paz no país?
Moçambique, como todos outros países, tem sido vítima do neoliberalismo ou do mercado. O que acontece é que Moçambique e os outros países africanos, sendo Estados novos e fracos,  a  acção governativa e as eleições dependem dos recursos materiais, recursos esses que não temos. Temos que pedir emprestado ou fazer dívida e acabamos caindo nessa escalonada da dívida. O segundo aspecto é o que chamamos de psicopolítica, o predomínio de uma vida virtual provocada pelo novo espaço que surge: a internet e as redes sociais. Este novo espaço ocupado pelos internautas interfere mais do que pensamos na virtualidade do fenómeno político. Daí que se pode entender que muitos debates se fazem por via da televisão ou da internet, onde se veiculam informações que saem do estado clássico e que, por isso, já não há controlo sobre eles. Também a nossa política moçambicana caiu numa virtualidade, onde interessa o espectáculo da televisão do que o real. A política moçambicana neste momento é caracterizada por uma dependência forte aos bens materiais, aos bens de consumo, mas não deixa de ser uma política que no fundo está para gerir recursos e esquece-se do importante, que é fazer utopias. E, por outro lado, estamos reféns desta explosão das redes sociais que veiculam realidades virtuais. Perante isso, Moçambique apresenta-se como Estado fraco, porque não tem recursos. É preciso que a gente produza mais para nos tornarmos autónomos ou soberanos.

E qual seria o papel dos académicos ou das instituições de ensino superior?
Há um défice que ocorre nas universidades moçambicanas, que é de produção de conhecimento. Nós temos um grande desafio de construir por nossa própria conta escolas de pensamento, aquelas que produzem conhecimento. Não quer dizer que não pode estar propensa àquilo que se passa no mundo, mas tem que ser objecto de “mastigação” interna nas universidades, para poder tirar para fora pensamentos próprios e, depois, produzir utopias sociais e pensamentos políticos para os políticos.

Como é que os graduados da Universidade Pedagógica têm contribuído para a evolução das comunidades de onde são oriundos? Há alguma forma de avaliar esse contributo?
Ocorre de duas formas: por um lado, temos reformas curriculares constantes, nas quais tentamos nos adaptar a situações de desenvolvimento, mas também através da participação de organizações profissionais da área na formulação de currículos, para que os estudantes aprendam coisas relevantes e que se passam no mercado. Por outro, nós temos feito estudos anuais acerca da empregabilidade dos estudantes que saem da universidade, de modo a olhar para o que está a acontecer. Os resultados são satisfatórios, em termos de desempenho dos estudantes.

De que forma os graduados conseguem ter “voz” na sociedade moçambicana e não influenciados por linhagens políticas?
Em relação aos saberes disponíveis na sociedade moçambicana, a universidade é só e simplesmente um pequeno campo de saber. Significa que os saberes que circulam na docência são, em quase 95%, os saberes produzidos em outros contextos históricos e culturais, mais exactamente ocidentais: Europa, Estados Unidos de América, etc.. Aqueles saberes produzidos a nível das comunidades culturais e outras são desperdiçados pelas universidades. O que nós tentamos fazer na Universidade Pedagógica, por via de vários cursos, é, aos poucos, começarmos a incluir a produção de saberes baseados em saberes que chamamos locais, por obras de autores moçambicanos, interpretação moçambicana de diferentes fenómenos.

Que estratégias a Universidade Pedagógica usa para que os saberes locais sejam geridos ou aconteçam efectivamente?
Nós temos, primeiro, a vantagem de estar em todas as regiões culturais do país. Temos diálogo directo com diferentes saberes produzidos em vários contextos. Quando falamos de saberes locais, problemas locais, não estamos a falar simplesmente de saberes científicos, mas de práticas que crescem em cada comunidade para minimizar os efeitos daquilo que é a destruição do seu ambiente, da sua sociedade, da comunidade, mas também que se transformam em propostas para resolver os problemas actuais de todo o universo. Outro aspecto importante que chamamos “glocalidade” – unir o local ao global – é a introdução de cadeiras que dizem respeito a Moçambique e África. Mesmo as monografias, há cada vez mais as que se dirigem àquilo que são contextos culturais e científicos da produção do conhecimento.

Até que ponto a Universidade Pedagógica está preparada e está a preparar os estudantes para uma sociedade inclusiva?
A inclusão epistémica significa estender cada vez mais grupos de pessoas com acesso ao conhecimento. só o facto de a Universidade Pedagógica priorizar estar em várias regiões e, por via disso, facilitar o acesso a um conhecimento superior a várias camadas é o primeiro grande passo de inclusão que podemos ressaltar. Por outro lado, a nossa política de género é muito forte. Agora temos um grupo nacional que está a estudar as formas de aumentar a cota do género feminino. A terceira, que é uma das mais importantes, é a inclusão social. Por via da expansão do ensino superior, esta inclusão é automaticamente melhorada. Eu costumo dizer uma tese que é muita debatida e que algumas pessoas negam: eu prefiro um estudante universitário na palhota do que um analfabeto; um estudante universitário a fazer actividades de subsistência do que um analfabeto, porque aquele tem melhores probabilidades de melhorar as suas condições de vida.

Acredita que Moçambique tem uma qualidade de ensino apreciável?
Não! A nossa qualidade em termos de competências básicas – saber ler, escrever, contar e competências tecnológicas – não é satisfatória. Nós temos que investir mais na formação de professores do ensino básico que possam levar essa tarefa de ensinar a ler, a escrever, a contar e também algum saber tecnológico como a sua tarefa principal. É um desafio concertado que nós temos que fazer.
Quais são os grandes desafios do ensino superior em moçambique?
As universidades têm que se tornar produtoras de conhecimento. Seja conhecimento social, tecnológico ou científico.

Tem-se chegado a esse objectivo?
Estamos muito longe. Devido a dois factores: tal como outros sectores, a educação e o ensino superior foram invadidos pelo mercado. Muitos professores têm-se dedicado à leccionação, porque aumenta a renda, do que à investigação, que exige muita recolha, contenção e sacrifício. O segundo problema é o financiamento. O financiamento agora está a sofrer uma transformação. Vai ser por estudante graduado e não pelo número de estudantes, como tem vindo a acontecer. Temos muita redução de financiamento, por vários factores. Teremos que pensar nos próximos anos como é que a tripartida ensino, pesquisa e extensão também se reflecte no financiamento. 

Podemos assumir que as nossas universidades são frágeis?
Ainda são muito frágeis, têm muitos desafios. Precisamos de aumentar muitos cursos de pós-graduação. A relação entre professores mestrados, professores doutorados, com o número de estudantes está muito aquém daquilo que é a média universal. Precisamos de investir muito e seriamente na formação dos docentes, mas também na formação de investigadores que se unam às redes internacionais. O último desafio é a internacionalização das universidades.

PERFIL
José Castiano é pró-reitor para Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão na Universidade Pedagógica e é professor associado nas cadeiras de Filosofia Africana e da Pós-Modernidade. É autor de vários livros, nomeadamente: “A Emergência do Filosofar”, “Das Bildungssystem Mosambiks (1975-1996): Entwicklungen, Probleme und Consequence”, “A Longa Marcha por uma Educação para Todos em Moçambique”, “Educar para Quê? - As transformações do Sistema de Educação em Moçambique”,  “As Ciências Sociais na Luta contra a Pobreza em Moçambique”, “Histoire de l’Éducation au Mozambique: De la Période Coloniale à nos Jours”, “Referenciais da Filosofia Africana. Em Busca da Intersubjectivação”, “Pensamento Engajado. Escritos sobre Filosofia Africana”, entre outros.



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