PELA primeira vez na história das Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM), uma rede liderada por altas patentes militares é desmantelada e detida por delapidação de fundos do erário público.
São 33 milhões de meticais desviados num esquema que não só envolve, até aqui, os três militares detidos (dois homens e uma mulher), mas também os seus familiares, amigos e pessoas de relações íntimas, através de transferências indevidas de somas avultadas de dinheiro para as suas contas. O desvio destas verbas prova, mais uma vez, que mesmo com as demarches que o Estado vem imprimindo com vista a um maior controlo dos fundos públicos, o saque ou a ganância pelo bem público continua patente em muitos funcionários que lidam directamente com as finanças.
Com a detenção dos militares em causa e que respondiam pela área financeira no Comando do Exército, um dos três ramos das Forças Armadas de Defesa de Moçambique, sob a égide do Estado-Maior General, tutelado pelo Ministério da Defesa (MDN), alarga-se o leque de entidades que entram para a história do nosso país, como instituições que registaram os maiores rombos financeiros. Entre as instituições mais sonantes que já tiveram casos iguais podem se destacar o Ministério do Interior, Aeroportos de Moçambique, Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano, entre outras. Aliás, o “mundo dos militares” foi sempre tido como algo à parte, facto que, segundo indicam as nossas fontes, terá criado condições para que a fraude tivesse lugar.
O “Notícias” foi atrás deste caso e apresenta aqui o “filme completo” da fraude que abala a imagem das Forças Armadas, pela chamada grande corrupção, envolvendo altas patentes do Comando do Exército. São militares que, por inerência de funções, foi-lhes confiada a gestão dos fundos e que, furtando-se das suas obrigações, desviaram um valor contabilizado em 33 milhões de meticais dos cofres do Estado.
Porque os indiciados estão ainda a ser ouvidos pelo Gabinete Central de Combate à Corrupção (GCCC), entidade que mandou recolhê-los para os calabouços na última sexta-feira, dia 20, optámos por omitir os nomes dos oito detidos. A sua prisão deverá ser legalizada ainda esta semana. Do grupo constam três militares de alta patente e cinco cidadãos civis e alheios à instituição, cujas contas foram usadas para desviar o dinheiro.
As investigações duraram um ano. Nem os próprios visados sabiam que estavam sendo investigados, isto depois de se ter constatado que naquele sector havia anomalias relacionadas com o manuseamento de fundos. A sua detenção aconteceu depois que foram notificados para comparecer junto do GCCC a fim de apresentar detalhes sobre a matéria recolhida no terreno. O Notícias sabe que alguns responsáveis do Estado-Maior General e do próprio Comando do Exército tentaram inviabilizar o trabalho dos investigadores, dizendo que não conheciam os visados que eram procurados pelo GCCC. Só depois, quando se aperceberam que o assunto era mesmo sério, e que corriam o risco deles mesmos (inviabilizadores) ficarem detidos por obstruir o trabalho da justiça, é que os visados foram instruídos a se dirigir ao GCCC, onde receberam ordens de prisão. Alguns dos civis foram recolhidos nas suas casas.
FAMILIARES NO ESQUEMA
O ESQUEMA central da fraude foi o uso de familiares dos que controlavam as finanças do Comando do Exército. Estes, até aqui em número de cinco e todos detidos, recebiam os fundos como se de funcionários se tratassem.
Um dos casos de destaque é de uma senhora, residente no distrito da Moamba, província de Maputo, que, conforme confessou aos investigadores, tem um filho com um dos responsáveis militares ora detido. Esta viu a sua conta a ser usada para vários depósitos e de somas avultadas. Chegou a receber acima de 100 mil meticais. Na vida real, a senhora é uma produtora agrícola na Moamba.
As chefias militares ora detidas usaram ainda contas dos seus filhos e amigos para sacar fundos. Há ainda o registo de folhas que foram pagas em que os nomes são dos militares e os números das contas para as quais os valores foram transferidos pertencem aos seus filhos ou amigos. Neste esquema, entram, segundo dados avançados ao nosso jornal pelos peritos, pessoas que se identificavam como namoradas e amigas dos cabecilhas da fraude, completamente alheias às Forças Armadas.
De 2012 a esta parte, os nomes constantes das folhas salariais e usados para a fraude nunca variaram. São os mesmos. Todos familiares directos e pessoas de confiança.
RECEBER 120 NO LUGAR DE 10 MIL
PARTE considerável dos pagamentos efectuados foi através de folhas salariais do Comando do Exército, onde os militares detidos eram responsáveis pelo sector financeiro. Eles tinham o pleno domínio de todo o processo financeiro e faziam as folhas consoante o seu agrado. Eles definiam o dinheiro que pretendiam sacar.
De acordo com dados em nosso poder, o Comando do Exército, incluindo o Estado-Maior General de que fazem parte, ainda não tem a Plataforma Electrónica de Administração Financeira do Estado (e-SISTAFE) implantada. Os pagamentos ainda são feitos através do sistema nacional de vencimentos, um procedimento antigo em que se preenche uma folha salarial e se leva ao banco para pagamento. Na folha vem a indicação dos nomes, montantes e os números de conta para onde o valor deve ser transferido. Os mapas que iam ao banco eram feitos pelos militares que controlavam o sector financeiro, onde os bancos apenas se limitavam a pagar.
É aqui onde os responsáveis aproveitavam para empolar o valor do salário das pessoas que constavam do esquema da fraude, ou depositar em contas dos seus familiares e amigos. Há registos de pessoas que deveriam, por exemplo, receber 10 ou 15 mil meticais de salário real, mas que na sua conta caíam valores empolados na ordem de 80, 90 até 120 mil meticais. Nalgumas vezes, os valores chegavam aos 250 mil meticais.
Depois de o valor ser transferido, os responsáveis financeiros do Comando do Exército procediam à redistribuição dos fundos pelos restantes membros da rede. Se o valor caísse na conta de um familiar, depois era transferido para as contas dos outros responsáveis. Noutros casos, se caíssem nas suas contas (dos militares), depois transferiam para as contas dos familiares.
Os investigadores do GCCC não excluem a possibilidade da existência de esquemas usando nomes de alguns militares perecidos, porque só os nomes por eles indicados é que constavam das folhas. O trabalho em curso vai procurar levar à barra da justiça outros quatro militares tidos como peças fundamentais no esquema de desvio de fundos do Comando do Exército. Os mesmos encontram-se fora da cidade de Maputo, havendo indicação de estarem a trabalhar em duas províncias e um a estudar fora do país. Todos beneficiaram-se de grande parte dos montantes da fraude.
O Gabinete Central de Combate à Corrupção não se dá por satisfeito. Os investigadores continuam no terreno em busca de mais elementos de prova e a seguir o rasto de outros montantes que continuam por contabilizar e saber do seu paradeiro.
MINISTÉRIO DA DEFESA PRONUNCIA-SE
Entretanto, a nossa Reportagem contactou o Ministério da Defesa Nacional (MDN) para ter mais elementos sobre a fraude ocorrida no Comando do Exército. Na pessoa do Major Benjamin Chabualo, assessor de Imprensa, obtivemos a seguinte resposta: “O Ministério da Defesa Nacional não tem nada a comentar sobre a matéria se não apenas colaborar para a investigação correr bem. Quem pode comentar é a instituição (GCCC) que está a investigar. De referir que é um assunto que está sendo investigado há mais de cinco anos” – reagiu o Major Chabualo, em nome do Ministério da Defesa Nacional.
DINHEIRO COMPRARIA SETE MILHÕES DE CARTEIRAS
É SABIDO que muitas das nossas escolas se debatem com problema de falta de carteiras. O Governo tem levado a cabo uma campanha de angariação de fundos de modo a apetrechar os mais de 12 mil estabelecimentos de ensino existentes no país e com défice de carteiras.
No entanto, o valor de 33 milhões de meticais desviados das contas do Comando do Exército chegaria para resolver parte dos problemas de falta de carteiras. Atendendo que o custo médio de uma carteira produzida internamente varia entre 3,5 e 4,5 mil meticais, o valor daria para comprar mais de sete milhões de carteiras e apetrechar perto de 120 salas de aula, com uma média de 60 a 70 alunos. Ou seja, o montante aliviaria mais de oito mil alunos que neste momento estudam sentados no chão.
SEGUNDO O GCCC: PREOCUPANTE ASSALTO AOS FUNDOS PÚBLICOS
NUMA altura em que o Estado vai sofisticando e consolidando as medidas de controlo dos fundos públicos via e-SISTAFE (Plataforma Electrónica de Administração Financeira do Estado), os casos de desvios não cessam. Pelo contrário, há um avolumar do assalto desmedido aos fundos públicos.
Mesmo não tendo somado todos os casos de desvio de fundos registados este ano, o Gabinete Central de Combate à Corrupção, através do seu porta-voz, Eduardo Sumana, fala em muitos biliões de meticais desviados este ano por funcionários públicos em todo o país.
“O assalto ao erário público nos últimos tempos tem sido preocupante. Constatámos isso a partir das auditorias que temos e outros mecanismos. A forma de estancar isto tudo é mostrarmos o nosso empenhamento e o nosso compromisso de atacarmos estas situações com vigor. O nosso apelo é no sentido de as pessoas serem vigilantes e denunciarem este tipo de situações a ver se conseguimos estancar.
Entretanto, não é apenas o Comando do Exército que ainda usa o mecanismo de pagamento salarial com procedimentos antigos, por via de folhas. O Comando da Força Aérea, Marinha, o Estado-Maior General e o próprio Ministério da Defesa Nacional ainda usam esta modalidade de pagamento, ou seja, ainda não aderiram ao e-SISTAFE (Plataforma Electrónica de Administração Financeira do Estado), o que é uma fragilidade muito grande.
Porque ainda não estão a implementar mecanismos inovadores de controlo de fundos públicos, suspeita-se que situações semelhantes às que aconteceram no Comando do Exército possam estar a ocorrer nestas instituições. Para que não se deixe o mal perpetuar, a Procuradoria-Geral da República vai propor ao Ministério da Defesa Nacional que saia do modelo de pagamento antigo, via folha de salário, para usar o e-SISTAFE, que confere maior segurança no manuseamento de fundos públicos.
“O e-SISTAFE não está implantado em todas as províncias do país, mas estes casos poderiam ser acautelados com mecanismos sofisticados e actualizados de controlo financeiro. Do jeito que os procedimentos estão a ser encaminhados, nada garante que o rombo financeiro não continue. Aliás, o que aconteceu dá a entender ser uma prática antiga que veio sendo continuada, sobretudo nas Forças Armadas” – indicou Eduardo Sumana, porta-voz do GCCC.
HÉLIO FILIMONE