20/10/2019
Por Carlos Nuno Castel-Branco
Está a circular uma nota de um cidadão que, no contexto das recentes eleições que, tudo indica, serão confortavelmente ganhas pela Frelimo e seus candidatos, coloca uma série de questões sobre as ONGs/OSCs (organizações não governamentais, ou organizações da sociedade civil), nomeadamente que estas organizações:
1) Pensam que representam melhor o povo moçambicano e, por isso, são intolerantes com o pensar diferente;
2) Fazem análises especulativas e sem bases sólidas, inventando os dados que utilizam;
3) Forjam notícias para manchar o governo;
4) Apoiam a oposição;
5) Promovem o genocídio;
6) Divulgam falsas profecias
7) Agora não sabem como vão justificar junto dos doadores a falácia das suas profecias.
8) O que dirão/farão os doadores agora?
2) Fazem análises especulativas e sem bases sólidas, inventando os dados que utilizam;
3) Forjam notícias para manchar o governo;
4) Apoiam a oposição;
5) Promovem o genocídio;
6) Divulgam falsas profecias
7) Agora não sabem como vão justificar junto dos doadores a falácia das suas profecias.
8) O que dirão/farão os doadores agora?
Dado que a Frelimo e seus candidatos ganharam as eleições e, ao que tudo indica, com larga margem, tudo o que estas organizações têm feito não tem base factual. Perante tal "evidência", o articulista pergunta: o que vão dizer aos doadores que controlam as vossas agendas e a quem mentiram?
Há, obviamente, uma série de problemas com estes argumentos deste articulista.
1) Trata todas as ONGs e OSCs como iguais, excepto as que são diferentes e patrióticas, as da Frelimo ou que apoiam o governo. As denominadas ONGs e OSCs são muito difreentes, tanto no objecto do seu trabalho (há instituições de investigação cintífica, há "think tanks", há organizações de advocacia, há instituições de implementação de programas, etc.), como nas suas abordagens e paradigmas. Portanto, não faz sentido generalizar discussões sobre elas.
2) Se algumas delas podem, ou não, pensar que representam o povo melhor, muitas outras estão focadas nos seus temas e não têm a pretensão de representar nada nem ninguém para além do seu próprio trabalho temático, geográfico, ou seja qual for a sua delimitação. O IESE e o OMR, por exemplo, fazem pesquisa nas suas áreas de competência e especialidade. Os resultados dessa e de outra pesquisa podem ser usados em advocacia, uma vez que a pesquisa é aberta e os seus resultados estão disponíveis para toda a gente.
3) Pode ser que haja ONGs e OSCs que fazem análises especulativas e sem bases sólidas. No entanto, quem previu a crise económica e explicou as suas dinâmicas, com alguns anos de antecedência? Quem tentou trazer o debate sobre o modelo de acumulação e a dívida pública para o público? Quem investigou a redundância dos incentivos fiscais dados aos grandes projectos e as implicações, para o bem-estar da sociedade, da perca de receita e dos gastos públicos com esses projectos (que o PM confirmou quando fez o seu discurso sobre a crise da dívida, em 2016)? Quem investigou e denunciou as dívidas ilícitas e fez as campanhas para que fossem os mandantes e executantes a pagá-las, e não o Estado ou o cidadão comum? Quem tem investigado e denunciado os problemas com as expropriações de terra, os reassentamentos e a violência a eles associados? Quem tem sistematicamente investigado a casualização e miseração do emprego? Quem investigou e denunciou a austeridade social e monetária imposta pelas instituições financeiras internacionais para obrigar Moçambique a pagar por ilícitos praticados por indivíduos associados a um governo? Quem tem investigado o carácter extractivo, cada vez mais primário e afunilado da base produtiva nacional e as limitações que isso coloca para opções e possibilidades de desenvolvimento? Quem tem investigado e explicado o carácter cada vez mais especulativo do sistema financeiro e discutido opções? Em que é que esta informação é falsa ou forjada? Qual destes assuntos é especulativo e assente em informação forjada?
4) Há ONGs e OSCs que apoiam ou estão comprometidas com partidos políticos, sejam eles a Frelimo ou outros. Mas, muitas não têm qualquer alinhamento dessa natureza - por exemplo, as organizações de investigação académica estão alinhadas com as suas agendas e fundamentos de investigação. Esta investigação pode colocar pontos críticos sobre política pública, porque política pública e o Estado são parte das dinâmicas sociais, económicas e políticas em análise. Por exemplo, um dos argumentos desenvolvidos, com base em em teoria social e em evidência histórica, social e com recurso a estatística oficial, sustenta que o modelo de construção capitalista em Moçambique assenta na massiva expropriação do Estado. Quem dirigiu esse Estado nos últimos 45 anos foi a Frelimo. Seria, o modelo, diferente se outros partidos tivessem assumido o poder? Ninguém pode responder a isso porque isso não aconteceu, mas é improvável que a simples alternância no poder possa mudar, no essencial, as estruturas sociais de acumulação. Associar a crítica a um modelo de acumulação e à expropriação do Estado (ou qualquer opção de política pública) com apoio à oposição e combate à Frelimo pode ser que diga mais sobre os preconceitos do articulista (provavelmente, refém de uma perspectiva de Estado partidarizado) do que sobre as "posições políticas" das ONGs/OSCs.
Mesmo que algumas ONGs e OSCs apoiem a "oposição", qual é o problema? O sistema político nacional é multipartidário. O trabalho dos media e das ONGs e OSCs deve ser objectivo, mas isso não quer dizer que membros ou instituições não possam ter filiação partidária. Por exemplo, o recrutamento de investigadores ou a avaliação do trabalho de investigação no IESE não inclui filiação partidária. Não há nenhum interesse institucional nas preferências partidárias, religiosas ou outras dos seus investigadores. Mas, os investigadores são, também, cidadãos pelo que podem ou não ter a sua filiação partidária individual. Se têm ou não, é irrelevante para o IESE e para a sua pesquisa. A pesquisa tem de ser objectiva e reunir as características de trabalho científico. Não se investiga a favor ou contra um dado partido.
Antes da campanha eleitoral, fui contactado por um partido para elaborar a secção económica do seu manifesto. Recusei. No entanto, grosso modo sugeri o que eles, como partido, como militantes, com uma causa qualquer, deveriam ler para entenderem o mais básico da economia de Moçambique. Agora, o que esse partido entende do seu estudo, o que escolhe como análise, como opções e como política é um assunto para esse partido e não para cientistas sociais que nem militam nesse ou noutro partido qualquer. Mesmo que eu militasse nesse partido, não escreveria o seu manifesto, porque o manifesto deve ser um produto do partido e do que ele representa, não uma série de ideias que vêm da cabeça de uma pessoa sentada no seu escritório.
Ser objectivo não significa não ter ideias e posições políticas. Ter ideias e posições políticas não significa ser militante de um partido (ás vezes, para se terem ideias e posições políticas coerentes é preciso NÃO ser membro de nenhum partido, sobretudo no contexto da nossa cultura política facciosa, asfixiante, de vitórias retumbantes e esmagadoras, etc.). E ser de um partido qualquer não é crime numa democracia multipartidária.
5) Pode ser que haja ONGs e OSCs que trabalham para doador ver, mas isso não pode ser generalizado a todas. Além disso, a vitória da Frelimo e dos seus candidatos - já esperada, mesmo que não na escala em que poderá ter acontecido - não resolve as questões que muitas destas organizações têm investigado e sobre as quais têm advogado. Desaparecem as dívidas ilícitas, o país deixa de estar endividado, o norte deixa de estar entregue ao capital multinacional, os focos de conflito e violência social e militar desaparecem, a economia fica mais inclusiva e mais eficaz a reduzir pobreza, apenas porque um ou outro partido ganhou eleições mais ou menos esmagadoramente? Não! Esses problemas afectam os doadores e serão resolvidos por eles? Não! São questões mais ou menos estruturais (algumas são sintomas de estruturas) que afectam a vida dos cidadãos de Moçambique. Logo, estes problemas hão-de continuar na agenda enquanto forem relevantes na vida da sociedade.
6) O articulista faz uma ligação directa, ilógica e teórica e metodologicamente não fundamentada, entre a vitória "esmagadora" da Frelimo e dos seus candidatos (ainda não há resultados oficiais finais) e a falácia das ONGs e OSCs. O argumento vai assim: as ONGs e OSCs disseram que o país estava em crise; logo, a Frelimo deveria perder ou ganhar por margens mínimas. A Frelimo ganhou por margens "esmagadoras"; logo o que as ONGs e OSCs disseram sobre a crise não é verdade. Isto é um absurdo. É tão absurdo deduzir uma derrota da Frelimo porque o país está em crise, como é deduzir que o país não está em crise porque a Frelimo ganhou. São duas faces do mesmo absurdo.
A questão menos relevante, de momento, é o que dirão os doadores (provavelmente, alguns estarão muito satisfeitos por se ter consolidado o poder de quem lhes garante todos os benefícios na exploração do Estado, dos cidadãos e dos recursos estratégicos nacionais). Mesmo quem ganhou as eleições e por quanto ganhou é importante mas não vital. O mais importante é o que vamos fazer sobre o nosso país, as suas dinâmicas estruturais de crise, a sua inserção no mundo e a maneira como o país funciona para beneficiar de todos, beneficiar todos e alterar as suas estruturas subdesenvolvidas, dependentes e extractivas de acumulação.
PS: É, no mínimo, irónico que alguém acuse ONGs e OSCs de forjarem informação contra o governo para ganharem dinheiro, quando dirigentes desse governo e dos que o antecederam venderam o país em troca de dinheiro. Não estou a dizer que um crime se justifica pela existência de outro crime. Estou a dizer que uma acusação, contra ONGs e OSCs, talvez possa estar a tentar esconder um crime praticado por outrem, tentando destruir qualquer hipótese de estudo e pensamento objectivos e não controlados por quem se acha no direito de monopolizar o pensamento, a história, a lógica, a razão e a política.
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