"Deus criou as pessoas para amarmos e as coisas para usarmos, porque então amamos as coisas e usamos as pessoas?"



quarta-feira, 12 de outubro de 2016

“A Constituição não pode ser um pretexto para continuarmos com a guerra” Severino Ngoenha

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Escrito por Adérito Caldeira  em 12 Outubro 2016
Foto de Adérito CaldeiraO partido no poder em Moçambique desde 1975 esteve reunido na Matola, primeiro os seus “quadros” e depois os influentes membros do Comité Central, nada de novo decidiram, pelo menos publicamente, para a vida do País que parece caminhar para o abismo. A mensagem do Presidente do partido Frelimo e de Moçambique continua a ser “Paz sim, mas não a qualquer preço. A tarifa da nossa Paz está na nossa Lei Mãe, na Constituição da República”. Severino Ngoenha, Reitor da Universidade Técnica de Moçambique, disse esta semana num colóquio em Maputo que os membros do partido Frelimo estão a esquecer que a “Constituição não foi escrita por Deus” e que “a própria Constituição não pode ser um pretexto para continuarmos com a guerra”, caso assim seja deve ser substituída por uma outra “que permita as pessoas encontrar um espaço de diálogo”.

“Não há sociedades sem conflitos, o problema não são os conflitos mas como os resolvemos” começou por explanar Ngoenha, que foi um dos oradores do Colóquio Fundador da Associação Franco-Moçambicana de Ciências Humanas e Sociais (AFRAMO-CHS) realizado esta semana na cidade de Maputo com o ambicioso tema de “Abordagem cruzada sobre as dinâmicas sociais em Moçambique: desafios e perspectivas”.
De acordo com o académico as “sociedades mais democráticas, mais desenvolvidas, mais participativas estão constantemente cheias de conflitos, conflitos de interesses, conflitos de ideias, conflitos de posicionamentos políticos, ideológicos, económicos, etc. A questão específica da questão de Moçambique é que nós estamos num conflito que vai permanecendo no tempo mas sobretudo a maneira como nós gerimos, a maneira como resolvemos os problemas fazem com que em vez de ser a solução do conflito sejam geradores de conflitos ainda maiores e suplementares”.
“A história da construção de Moçambique é a história de uma vontade de independência, de um valor comum, de uma ideologia que se foi configurando unitária mas por detrás desta aparente unidade necessária escondiam-se valores diferentes” disse Severino Ngoenha dissertando sobre os “Conflitos em Moçambique, razões do passado, razões do presente”.
“Por detrás desta causa que era a independência de Moçambique que parecia única se escondiam, talvez, por detrás muitas outras causas. E por detrás de uma verdade, quer seja política ou ideológica, escondiam-se muitas outras verdades. E que elas ficaram praticamente escondidas enquanto a causa comum permanecia, mas a partir do momento em que a caixa de pandora se abriu é que fomo-nos dando conta que afinal a unidade, os tais valores únicos, a tal visão unitária de vida que nós tínhamos não era tão unida nem tão unitária como ela poderia parecer á primeira vista, esta é a primeira razão histórica”.
Conjuntura internacional contribuiu para os conflitos pós-independência de Moçambique
Para o Reitor da Universidade Técnica, uma das razões históricas está relacionada com a forma como a FRELIMO, a Frente de Libertação de Moçambique nasceu, “oriunda de movimentos com interesses diferentes, com a percepção de independência pelo espaço geopolítico diferentes(...) mas também, provavelmente como uma concepção daquilo que devia ser o processo de independências também eram diferentes, mas a vontade comum que passava pelo espectro de unidade que era necessária mas que talvez não existisse e nem estivesse presente”.
Outro motivo histórico evocado por Ngoenha na sua apresentação tem a ver com “o posicionamento de Moçambique, o facto de estarmos na África Austral, de estarmos ligados a Rodésia de um lado e a África do Sul no outro e que havia um sistema de apartheid. Por detrás do apartheid, do racismo etc, esconderam-se processos que acabaram tendo uma influência muito forte. Lutar contra Moçambique depois da independência era tornar-se no xadrez político internacional de um lado, porque a FRELIMO de uma maneira imposta tinha sido obrigada a escolher o regime político, que talvez não fosse isso que fosse a coisa mais importante depois da independência mas a conjuntura internacional impôs que Moçambique acabasse optando por uma ideologia política que ela mesmo acabou sendo, em parte, co-responsável dos conflitos que se seguiram logo depois da independência”.
“Este posicionamento que Moçambique teve que ter para lutar pela independência levou-nos a cair no campo socialista e também está na origem dos movimentos que se opuseram a FRELIMO. Porque se de um lado havia certamente pessoas que militavam pelo nascimento da RENAMO por razões intrinsecamente políticas, havia a oportunidade externa de desestabilização”, disse Severino Ngoenha.
“Entramos para a política porque tornou-se o trampolim que nos permitir fazermos carreira no mundo económico”
O Professor universitário, falando para uma plateia maioritariamente de jovens, recordou que nesse momento histórico gerou-se alguma “confusão para sabermos quem são aqueles que militavam porque tinham ideais diferentes e quais eram aqueles que eram instrumentos de poderes num conflito maior ideológico, a Guerra Fria”.
“Porque as grandes potências não se podiam defrontar no próprio Ocidente então os países do Sul eram o teatro onde directamente o conflito se realizava. Então é muito difícil de saber se nós assistimos em Moçambique o nascimento da RENAMO era só uma questão interna, étnica, tribal, razões ideológicas diferentes etc, ou se era a teatralização do espaço onde se materializava um conflito que não tinha a ver connosco, que não nos interessava mas a nossa posição geográfica, a nossa fraqueza histórica, fazia com que nós fôssemos um palco privilegiado para fazer conflitos”, clarificou Ngoenha.
Todavia, de acordo com o académico moçambicano, “Acabada a Guerra Fria todas essas coisas escondidas começaram a vir para fora, todos que eram socialistas desfaleceram, aqueles que eram militantes por causa deixaram de sê-lo e posicionamentos diferentes começaram a manifestar-se. O rei dinheiro começou a imperar, vou chamar a isso a biopolítica, entramos no sistema em que não fazemos política para solucionar os problemas da pessoas mas entramos para a política porque a política tornou-se o trampolim que nos permitir ter dividendos e fazermos carreira no mundo económico”.
“As ideologias acabaram, é muito difícil saber o que a Frelimo(NE: agora partido político) propõe hoje, mas também é muito difícil saber o que a Renamo(NE: partido político) propõe hoje. Parece que esvaziamos de ideias, não há ideias” declarou o palestrante que concluiu que “parece que a nova ideologia dominante pós-socialismo, do fim das contradições ideológicas, ficou ideal liberal e neoliberal de ter mais, acumular mais e fazer mais riquezas”.
“Frelimo sem ideias, Renamo também não tem muitas"
"Então a política deixou de ser ideológica, não se tornou partidocrática, os partidos têm pouco a dizer e de referências, mas tornou-se, para mim, aparelhocrática. Quero dizer que os partidos tornaram-se aparelhos, aparatos. O aparato é uma organização sociológica a qual nós aderimos, damos as nossas energias e nós aderimos a ela porque é fornecedora de oportunidades” explicou.
Na perspectiva do Professor Severino, “hoje o que nós assistimos, em minha opinião, é uma Frelimo sem ideias. A Renamo também não tem muitas. Mas que a gente entra a pertencer a Frelimo, se vocês se recordam-se em 1974-75 vocês passava 2 a 4 anos para provar que podia ser membro da Frelimo. Depois dos acordos de Paz você basta querer ser da Frelimo você inscreve-se, quanto mais dinheiro você puder trazer à máquina, ao aparelho, ao aparato Frelimo você vai progredir. Porque você dá esse dinheiro? Você dá esse dinheiro, você entra a pertencer a esse aparato porque esse aparato vai-lhe fornecer oportunidades. Então nós entramos num ciclo vicioso, a gente tem que pertencer a um aparelho a um aparato porque ele é fornecedor de grandes oportunidades. Infelizmente isto não é uma questão específica de Moçambique, encontramos na maior parte dos países, até nos mais desenvolvidos, encontramos pessoas que entram para fazer a política para aceder às oportunidades”.
“Então o que eu penso que seria um caminho para fazer uma investigação séria sobre o que está-nos a acontecer? A única legitimidade que a Frelimo tem, e que ela não cansa de nos recordar, é que foi ela que libertou Moçambique, que ela pegou em armas de uma maneira destemida, lutou e libertou. Ela pensa que essa legitimidade lhe confere o direito, como disse Chipande (Alberto) há algum tempo atrás, de governar mais 50 ou 100 anos” declarou o Reitor da Universidade Técnica de Moçambique.
Porém, acrescentou o Professor, “A Renamo também reivindica uma legitimidade. Essa legitimidade é nós trouxemos a democracia para Moçambique. Então estamos aqui em guerra do uso indevido de processos históricos que o passado criou e que acabam condicionado toda aquela ânsia que nós temos lá para frente de sonharmos, de fazermos coisas que podem ser referências. Precisamos de sonhar coisas diferentes, e sonhar coisas diferentes significa sair do quadro em que nós estamos, de um conflito cuja assumpção de problemas passam necessariamente por armar-nos e dispararmos uns contra os outros mas sem escondermos as nossas diferenças, sem escondermos as nossas incompreensões, as nossas diferentes maneiras de pensar, sermos capaz de nos posicionarmos e termos um palco de diálogo”.
Frelimo está a esquecer que a Constituição não foi escrita por Deus
“A economia é o lugar da realização do indivíduo, a política é o lugar da correcção das desigualdades sociais de um País. Quando aqueles que fazem política, fazem dela um instrumento ou um meio para acumular a dimensão da política mesmo como um conceito desaparece. Que dizer que uma utopia, o sonho da igualdade, que se criem instituições que sejam capazes de manter esta dinâmica de conflito contínuo mas em ambiente de paz e diálogo me parece algo indispensável”, afirmou Severino Ngoenha.
Foto do partido FrelimoSobre a guerra que o nosso País vive o Professor Universitário não teve receio de afirmar que o Presidente Filipe Nyusi, e os influentes membros do seu partido, estão equivocados quando dizem que pretendem a paz sim, mas é preciso respeitar a Constituição da República.
De acordo com Severino Ngoenha os “camaradas” estão a esquecer que a Constituição não foi escrita por Deus, “as Constituições são respostas históricas e culturais que um povo se dá num determinado momento para criar condições para uma paz efectiva, uma maneira de resolver os seus problemas possa ser encontrada. A França está na quinta República já fez cinco Constituições desde a Revolução francesa, os Estado Unidos (da América) estão cheios de emendas Constitucionais, quer dizer que se a escolha não pode ser uma justificação nem um pretexto para continuar a governar mesmo quando tenham propostas”.
“A própria Constituição não pode ser um pretexto para continuarmos com a guerra, dizem que é uma Carta que temos de respeitar a todo o custo mas porque a Constituição é o centro do conflito então ela mesma não serve, deve ser substituída por uma outra Carta que permita as pessoas encontrar um espaço de diálogo”, concluiu o académico moçambicano deixando claro que não se importa que gostem ou não do que pensa e expõe publicamente.

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