"Deus criou as pessoas para amarmos e as coisas para usarmos, porque então amamos as coisas e usamos as pessoas?"



quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Editorial: O Princípio da razoabilidade!



Maputo (Canalmoz) - No dia 1 de Setembro de 2010, quando a população decidiu sair à rua, na cidade de Maputo, para protestar contra o elevado custo de vida, houve uma alma inocente, que nada tinha a ver com as manifestações, que deu um abraço à mãe e saiu de casa para a escola, ali no Bairro da Maxaquene “B” e nunca mais voltou. Hélio era o seu nome, e só tinha 11 anitos. Quando as escaramuças atingiram o auge, que obrigou ao encerramento das aulas, Hélio, como todas as outras crianças, foi obrigado a ir para casa.

Pelo caminho, ali na Av. Acordos de Lusaka, um agente da Polícia da República de Moçambique disparou com intenção de matar e atingiu o pequeno Hélio na cabeça.

Desamparado, Hélio tombou ali no asfalto quente, com a sua sacola ao ombro, com a cabeça desfeita por uma bala. Rute Muianga, mãe do pequeno Hélio, foi à 12.a Esquadra pedir responsabilização e foi mandada embora. No dia seguinte, voltou, e foi-lhe informado que, caso voltasse a pôr os pés naquela Esquadra, acabaria nas celas.

Um familiar ajudou Rute Muianga a apresentar o caso à Liga dos Direitos Humanos (LDH), que processou o Estado. Em 2012, saiu a sentença do Tribunal Administrativo a indemnizar a mãe do falecido Hélio com uma quantia de 500.000,00 meticais. Hélio está morto.

Nesta terça-feira, o Tribunal Judicial da Cidade de Maputo proferiu uma sentença na qual estipula uma luxuosa indemnização de mais de 200 milhões de meticais (rigorosamente: 200.575.000,00 meticais) sobre um caso de briga de namorados, em que a vítima ficou sem um olho. Vamos ignorar que o incidente se deu sob comprovado efeito de embriaguez. Vamos ignorar que há um bastonário da Ordem dos Médicos que provou em tribunal que com um soco era impossível criar o dano ao olho naquelas proporções. Vamos ignorar que o relatório médico anexo à queixa foi feito em casa da mãe da vítima, que convocou a Direcção da Medicina Legal aos seus aposentos. Vamos ignorar que há mensagens da vítima depois do incidente a indicar que a sua família iria industriar um caso de violência doméstica. Vamos ignorar que há uma decisão de um tribunal sul-africano que não viu matéria de violência doméstica, pois, após o incidente, a vítima e o acusado andaram a mimosearem-se. Vamos ignorar que há um presidente de uma associação de juízes que, com o caso a ser julgado, convoca a imprensa para dar indicações de que a pena do julgamento que está a decorrer deve ser histórica. Vamos ignorar tudo isso, pois – tal como diz a célebre juíza Judite Mahoche Simão, qual mascote representante da Justiça nacional – “é como nos filmes”.

Aquilo sobre o que pretendemos reflectir, são os critérios de razoabilidade que a Justiça de um mesmo país usa para encontrar o termo ou diferença compensatória decorrente dos danos causados por ilícitos culposos.

Se há alguém que perde um olho e é compensado com 200 milhões de meticais, e se há quem perde a vida e é compensado com 500.000,00 meticais, então a Justiça está a mostrar-nos, com base em números, que há neste país vidas que valem mais do que as outras, na óptica do Estado. Há aqueles que são considerados moçambicanos de primeira, e há os moçambicanos de segunda. Bem feitas as contas, um olho dos moçambicanos de primeira equivale, para a Justiça moçambicana, 400 vidas dos moçambicanos de segunda, entre os quais o Hélio.

É preciso que fique claro que não temos qualquer intenção de desvalorizar uma situação de perda de um olho. Concordamos que os casos de violência doméstica devem ter responsabilização exemplar para desencorajar tal prática, que esmaga muitos anónimos, que não têm a sorte de serem mediatizados.

Na nossa modesta opinião – e se assumirmos que uma indemnização não é nada mais do que um meio compensatório dos danos causados por uma acção culposa –, é caso para perguntar à juíza Marina Augusto, que lavrou a sentença de ontem, e aos juízes do Tribunal Administrativo, que lavraram a sentença do caso do Hélio, com que critérios trabalha o Estado, afinal.

Em todos os manuais sobre o princípio compensatório decorrente de danos culposos o que se extrai é que a ponderação sobre a gravidade do dano não patrimonial e, correspondentemente, do valor da sua reparação deve ocorrer sob o signo do princípio da proporcionalidade – que segundo o qual a danos mais graves deve corresponder uma indemnização mais alta: a indemnização deve ser fixada tendo em conta os parâmetros jurisprudenciais geralmente adoptados para casos análogos. Isso, é exactamente para evitar que a ciência compensatória seja uma espécie de lotaria com requintes de “fortuna ou azar”.

Nestes dois casos, qual deles é o mais grave? Qual é o caso análogo ao desta terça-feira, do qual se extraiu o parâmetro jurisprudencial que levou a juíza Marina Augusto a desaguar numa indemnização luxuosa?

De todas as formas, o que mais se evidencia aqui é uma marcha muito séria rumo à ridicularização da Justiça moçambicana, porque não cabe na cabeça de ninguém que uma indemnização por uma situação de perda de uma vida seja apenas uns trocos, quando comparada com uma indemnização pela perda de um olho.

O raciocínio mais provável para explicar isto é o de que talvez seja uma espécie de padronização que a Justiça previamente tipificou sobre a qualidade humana das vítimas e sobre a sua dose de moçambicanidade. No nosso modesto entender, há aqui uma vítima que é mais humana e mais moçambicana do que a outra.

Ou, se calhar, o Hélio teve o azar de ter o apelido errado, e a Justiça não lhe ligou grande importância. Dito de outra forma: na óptica da Justiça moçambicana, há um olho que vale 400 vidas humanas de moçambicanos de segunda. Hélio, foste morto e depois enganado 400 vezes. (Canalmoz)


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