02/05/2017
Por Tomás Vieira Mário
- Do soneto à emenda
O assunto de maior preponderância política na aprovação desta CGE é a inclusão das dívidas contraídas pelo Governo do mandato anterior, para a constituição de três empresas na área da segurança costeira (EMATUM, PROINDICUS e MAM), em 2013, com garantias do Estado Moçambicano. Estas garantias foram concedidas ilegalmente, (pelo Ministro das Finanças, neste caso Manuel Chang), violando as leis orçamentais de 2013 e de 2014, e sobretudo, a Constituição da República de Moçambique (CRM). As dívidas estão avaliadas em 1.4 mil milhões de dólares. A AR “branqueou” a ilegalidade destas dívidas…a título excepcional. E pergunta-se: uma violação da Constituição da República deixa de ser uma violação por ser praticada …“a título excepcional”? Em termos de consequências políticas, não será o caso em que a emenda ficou pior do que o soneto?
- O relatório da CPI como documento-base
Em 2016, a Assembleia da República decidiu criar esta CPI para realizar um inquérito com o objectivo de apurar as circunstâncias em que a dívida foi contraída à sua revelia. A CPI concluiu e submeteu o seu relatório ao órgão, no dia de 30 de Novembro de 2016, sendo disponível ao público.
No culminar da análise das informações recolhidas em sede do inquérito, a CPI apresenta as suas conclusões, dizendo, a dado passo:
“A Comissão está convicta de que a disposição constitucional constante do artigo 179, nº2, alínea p, (…) estabelece no seu âmbito que a prestação de fianças, avales e garantias pelo Estado que possam dar lugar a despesas em exercícios económicos futuros necessitam de uma autorização por lei no sentido formal (Lei da Assembleia da República) que permita a determinação do montante dos mesmos, através da fixação expressa dos limites máximos”.
Com efeito, o mesmo artigo 179, al.p) estabelece, no seu número 2, como uma das competências exclusivas da Assembleia da República, “autorizar o Governo, definindo as condições gerais, a contrair ou a conceder empréstimos, e realizar outras operações de crédito, por um período superior a um exercício económico e a estabelecer o limite máximo dos avales a conceder ao Estado”.
Perante as suas constatações, “a Comissão apresenta as seguintes possíveis consequências da violação da Lei Orçamental de 2013 e 2014, bem assim da Constituição da República, no seu artigo 179, nº2, alínea p):
Sendo a Lei Orçamental o limite dos avales ou garantias, e tendo inexistido (nosso sublinhado) a lei de autorização, como condição ou pressuposto essencial para a válida emissão de garantias às empresas EMATUM, SA; PROINDICUS, SA; e MAM, SA., deverá entender-se que, na sua falta, as garantias são nulas (nosso sublinhado), pois o acto da sua emissão excedeu os limites constantes dos artigos 11, nº3, das Leis Orçamentais 1/2013, de 7 de Janeiro e 1/2014, de 24 de Janeiro e a parte excedente foi emitida sem autorização parlamentar, violando a alínea p) do nº2 do artigo 179 da Constituição da República (nosso sublinhado): “autorizar o Governo, definindo as condições gerais, ao contrair ou a conceder empréstimos, a realizar outras operações de crédito, por um período superior a um exercício económico e a estabelecer o limite máximo dos avales a conceder pelo Estado”.
“ (…) A Comissão apresenta as seguintes possíveis consequências da violação da Lei Orçamental de 2013 e 2014, bem assim da Constituição da República, no seu artigo 179, nº2, alínea p):
Sendo a Lei Orçamental o limite dos avales ou garantia, e tendo inexistido a lei de autorização (nosso sublinhado), como condição ou pressuposto essencial para a válida emissão de garantias às empresas EMATUM, SA; PROINDICUS, SA; e MAM, SA., deverá entender-se que, na sua falta, as garantias são nulas (nosso sublinhado) ….
Pergunta: sendo estas garantias nulas, poderia o Estado Moçambicano, através da Assembleia da República, repudia-las, ficando ele assim desonerado?
Resposta: Legalmente, poderia, sim, o Estado Moçambicano repudia-las, precisamente por serem ilegais e violarem a Constituição. Em tal caso, recorreria, o Estado, à figura que se designa por “repudio camuflado da garantia prestada à dívida”. Para tal, o Estado lançaria mão da sua qualidade de ente soberana, que lhe confere imunidade, como de resto refere o próprio relatório da CPI.
E o “assunto” ficaria assim fechado, ficando toda a responsabilidade apenas nas “mãos”das três empresas? A resposta é … não. Diz, a respeito, o relatório da CIP:
(O recurso à figura do) repúdio camuflado das garantias prestadas não teria o efeito pretendido por duas razões essenciais:
Porém esta modalidade não está prevista na CRM. Nem podia, de forma alguma, estar prevista, sob o risco de anular o efeito prático do poder exclusivo nesta matéria, conferido à Assembleia da República, nos termos do já citado artigo 179. Com efeito, a hipótese da CRM prever fiscalização a posteriori da execução orçamental traduzir-se-ia na atribuição de poderes quase ilimitados ao Governo, em violação do princípio da separação dos poderes.
Perante este novo “bloqueio” constitucional, a CPI recorre à figura de “competências genéricas da Assembleia da República de fiscalizar a gestão financeira do Estado, nos termos do artigo 131 da Constituição. Ora, esta é, clamorosa e indisfarçavelmente, uma “saída” por demais frágil e insustentável, em razão do género e espécie da matéria em causa, para cuja regulação a Constituição da República atribui “poder exclusivo” ao Parlamento! E não seria por acaso!
Desta série de “bloqueios” a qualquer saída do Estado de todo o imbróglio extrai-se, clara, a seguinte conclusão: os arquitectos das malditas dívidas urdiram um complexo esquema jurídico-legal, com conexões internacionais, tal que assegura que, seja qual for o Governo, e seja qual for a sorte das três empresas, o Estado Moçambicano deverá garantir que os credores vão receber de volta o seu dinheiro, com os devidos juros!
Violar Constituição …a título excepcional
Consciente deste facto, o qual apenas reafirma a extrema gravidade da conduta do executivo anterior, que deixou ao actual Governo um Estado literalmente manietado e armadilhado, o relatório da CPI soçobra, afirmando:
“Não tendo acontecido a previsão anterior, e havendo o risco potencial de o Estado ser chamado, seria correcta a inclusão destas despesas a título excepcional (nosso sublinhado) no Orçamento do ano subsequente”.
Por outras palavras, praticar-se-ia um acto violador da Constituição da República… a título excepcional. Mas então pergunta-se: uma violação à Constituição da República deixa de ser violação por ser…. a título excepcional?
Consequências da violação da Constituição
Que consequências podem resultar da violação da Constituição, logo pelo mais alto poder legislativo da Nação?
A primeira consequência é obviamente a banalização da própria Constituição da República, reduzindo-a a documento facilmente manipulável, para o branqueamento de actos lesa-pátria, como foram os empréstimos contraídos neste negócio de contornos absolutamente obscuros.
Uma segunda consequência – alias gravíssima! – é transmitir-se a ideia de que, afinal, a Assembleia da República pode deixar de guiar os seus actos no estrito respeito pela Constituição da República, criando para esta, a aceitabilidade de actos inconstitucionais, sob o signo da excepcionalidade.
A terceira consequência é transmitir ao Governo e a outras forças relevantes que, afinal, o Governo pode tomar decisões ilegais e inconstitucionais, pois sempre tais inconstitucionalidades poderão ser sanadas, através de medidas “a título excepcional”, tomadas em sede da Assembleia da República.
No final do dia, a consequência é reduzir o conteúdo jurídico-político de “Estado de Direito Democrático” a mera letra morta, cuja função é pouco mais do que embelezar a própria Constituição da República, garantindo-lhe posição digna ao lado de outras baseadas nos mesmos princípios, porque violação da Constituição da República é violação da Constituição da República. Não há, em pode haver, meio-termo!
O PAÍS – 02.05.2017
Com efeito, o mesmo artigo 179, al.p) estabelece, no seu número 2, como uma das competências exclusivas da Assembleia da República, “autorizar o Governo, definindo as condições gerais, a contrair ou a conceder empréstimos, e realizar outras operações de crédito, por um período superior a um exercício económico e a estabelecer o limite máximo dos avales a conceder ao Estado”.
Perante as suas constatações, “a Comissão apresenta as seguintes possíveis consequências da violação da Lei Orçamental de 2013 e 2014, bem assim da Constituição da República, no seu artigo 179, nº2, alínea p):
Sendo a Lei Orçamental o limite dos avales ou garantias, e tendo inexistido (nosso sublinhado) a lei de autorização, como condição ou pressuposto essencial para a válida emissão de garantias às empresas EMATUM, SA; PROINDICUS, SA; e MAM, SA., deverá entender-se que, na sua falta, as garantias são nulas (nosso sublinhado), pois o acto da sua emissão excedeu os limites constantes dos artigos 11, nº3, das Leis Orçamentais 1/2013, de 7 de Janeiro e 1/2014, de 24 de Janeiro e a parte excedente foi emitida sem autorização parlamentar, violando a alínea p) do nº2 do artigo 179 da Constituição da República (nosso sublinhado): “autorizar o Governo, definindo as condições gerais, ao contrair ou a conceder empréstimos, a realizar outras operações de crédito, por um período superior a um exercício económico e a estabelecer o limite máximo dos avales a conceder pelo Estado”.
- Consequências da violação da Lei Orçamental e da CRM
“ (…) A Comissão apresenta as seguintes possíveis consequências da violação da Lei Orçamental de 2013 e 2014, bem assim da Constituição da República, no seu artigo 179, nº2, alínea p):
Sendo a Lei Orçamental o limite dos avales ou garantia, e tendo inexistido a lei de autorização (nosso sublinhado), como condição ou pressuposto essencial para a válida emissão de garantias às empresas EMATUM, SA; PROINDICUS, SA; e MAM, SA., deverá entender-se que, na sua falta, as garantias são nulas (nosso sublinhado) ….
Pergunta: sendo estas garantias nulas, poderia o Estado Moçambicano, através da Assembleia da República, repudia-las, ficando ele assim desonerado?
Resposta: Legalmente, poderia, sim, o Estado Moçambicano repudia-las, precisamente por serem ilegais e violarem a Constituição. Em tal caso, recorreria, o Estado, à figura que se designa por “repudio camuflado da garantia prestada à dívida”. Para tal, o Estado lançaria mão da sua qualidade de ente soberana, que lhe confere imunidade, como de resto refere o próprio relatório da CPI.
E o “assunto” ficaria assim fechado, ficando toda a responsabilidade apenas nas “mãos”das três empresas? A resposta é … não. Diz, a respeito, o relatório da CIP:
(O recurso à figura do) repúdio camuflado das garantias prestadas não teria o efeito pretendido por duas razões essenciais:
- A primeira reside no que se aceite a responsabilidade pré-contratual nos termos do artigo 227º, nº1 do Código Civil: “1. Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa-fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte”, esta é extensiva também aos negócios celebrados pela Administração Pública, o que abriria a possibilidade de o Estado ter agido com “culpa in contrahendo”, dado que teria prestado ou emitido garantias com vício evidente da violação da lei e da Constituição e, como tal, agido de má-fé, motivo por que poderia ser responsabilizado.
- A segunda reside no facto de que o Estado ao ter emitido as garantias assumiu compromisso no plano internacional e submeteu-se aos ordenamentos estrangeiros, nomeadamente à legislação vigente na Grã-Bretanha. Segundo este Acto Legislativo Britânico de 1978, o Estado Moçambicano seria julgado no Reino Unido sem se fazer valer dessa qualidade (perde imunidade), nos actos relativos a casos comerciais ou de outra natureza, o que acaba colocando o Estado numa situação delicada, como ente soberano.
- Estado moçambicano colocado num “beco sem saída”
Porém esta modalidade não está prevista na CRM. Nem podia, de forma alguma, estar prevista, sob o risco de anular o efeito prático do poder exclusivo nesta matéria, conferido à Assembleia da República, nos termos do já citado artigo 179. Com efeito, a hipótese da CRM prever fiscalização a posteriori da execução orçamental traduzir-se-ia na atribuição de poderes quase ilimitados ao Governo, em violação do princípio da separação dos poderes.
Perante este novo “bloqueio” constitucional, a CPI recorre à figura de “competências genéricas da Assembleia da República de fiscalizar a gestão financeira do Estado, nos termos do artigo 131 da Constituição. Ora, esta é, clamorosa e indisfarçavelmente, uma “saída” por demais frágil e insustentável, em razão do género e espécie da matéria em causa, para cuja regulação a Constituição da República atribui “poder exclusivo” ao Parlamento! E não seria por acaso!
Desta série de “bloqueios” a qualquer saída do Estado de todo o imbróglio extrai-se, clara, a seguinte conclusão: os arquitectos das malditas dívidas urdiram um complexo esquema jurídico-legal, com conexões internacionais, tal que assegura que, seja qual for o Governo, e seja qual for a sorte das três empresas, o Estado Moçambicano deverá garantir que os credores vão receber de volta o seu dinheiro, com os devidos juros!
Violar Constituição …a título excepcional
Consciente deste facto, o qual apenas reafirma a extrema gravidade da conduta do executivo anterior, que deixou ao actual Governo um Estado literalmente manietado e armadilhado, o relatório da CPI soçobra, afirmando:
“Não tendo acontecido a previsão anterior, e havendo o risco potencial de o Estado ser chamado, seria correcta a inclusão destas despesas a título excepcional (nosso sublinhado) no Orçamento do ano subsequente”.
Por outras palavras, praticar-se-ia um acto violador da Constituição da República… a título excepcional. Mas então pergunta-se: uma violação à Constituição da República deixa de ser violação por ser…. a título excepcional?
Consequências da violação da Constituição
Que consequências podem resultar da violação da Constituição, logo pelo mais alto poder legislativo da Nação?
A primeira consequência é obviamente a banalização da própria Constituição da República, reduzindo-a a documento facilmente manipulável, para o branqueamento de actos lesa-pátria, como foram os empréstimos contraídos neste negócio de contornos absolutamente obscuros.
Uma segunda consequência – alias gravíssima! – é transmitir-se a ideia de que, afinal, a Assembleia da República pode deixar de guiar os seus actos no estrito respeito pela Constituição da República, criando para esta, a aceitabilidade de actos inconstitucionais, sob o signo da excepcionalidade.
A terceira consequência é transmitir ao Governo e a outras forças relevantes que, afinal, o Governo pode tomar decisões ilegais e inconstitucionais, pois sempre tais inconstitucionalidades poderão ser sanadas, através de medidas “a título excepcional”, tomadas em sede da Assembleia da República.
No final do dia, a consequência é reduzir o conteúdo jurídico-político de “Estado de Direito Democrático” a mera letra morta, cuja função é pouco mais do que embelezar a própria Constituição da República, garantindo-lhe posição digna ao lado de outras baseadas nos mesmos princípios, porque violação da Constituição da República é violação da Constituição da República. Não há, em pode haver, meio-termo!
O PAÍS – 02.05.2017
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