"Deus criou as pessoas para amarmos e as coisas para usarmos, porque então amamos as coisas e usamos as pessoas?"



domingo, 8 de janeiro de 2017

MANIFESTO SONORO RUMO AO MOÇAMBIQUE QUE NÃO QUEREMOS HOJE E AO MOÇAMBIQUE QUE QUEREMOS AMANHÃ - Uma breve revista em torno do album “Cubaliwa”, do rapper Azagaia

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"(...) A verdade não tinha cara até tu conheceres a minha
basta chegarem as eleições para tu conheceres a cara da mentira (...)”
(Azagaia, na música “Calaste”)

A primeira coisa que disse para mim mesmo, ao escutar pela primeira vez o álbum Cubaliwa, foi: ‘’Edgar, tu não podes ficar por aí... Tens de partilhar esse sentimento com o mundo, fazendo o melhor que podes para a sua disseminação, apreciação e apropriação’’. Decidi então prestar esta homenagem escrita a um dos álbuns de Hip Hop que certamente vai ficar estampado na história da nossa música de intervenção. Com efeito, o álbum começa logo com uma radiografia geral da sociedade moçambicana actual. Azagaia parte da sua experiência individual como rapper de intervenção e a censura que tem tido dos guardiões do regime, atravessando em voo rasante a precariedade do nosso sistema nacional de ensino que (de)forma industrialmente alunos e estudantes com graves deficiências de competência linguística, escrita e crítica, criticando o silêncio cúmplice dos funcionários e agentes do Estado perante o estado catastrófico da governação actual, expondo a sua identidade para com os agraciados pela pobreza absoluta e apresentando a sua preocupação com a perdição generalizada da nossa juventude em vícios modernos como o álcool, o sexo e a vida fácil. A música de introdução ao novo álbum tem como título “Calaste” e, em termos de execução sonora, não foge muito a linha de outras com as quais Azagaia nos habituou. Instrumentalmente faz lembrar a música “A Marcha”, do seu anterior álbum, e é seguida por outra que, quanto a mim, parece-me ser a mais bem conseguida em termos lírico-temáticos: “Cães de Raça”. Nesta música, a técnica descritiva que tem caracterizado as letras do rapper atinge o cume da inovação ao apresentar uma espécie de retrospectiva histórica das nossas origens como nação. A nossa miscelânea racial, composta essencialmente por um casamento social de conflito e de competição entre negros, brancos, mulatos e cidadãos de origem asiática, ganha um muito bem conseguido espelho artístico que ao mesmo tempo revela a origem e expõe a intercepção dos nossos preconceitos, realidades e dinâmicas relacionais. Os medos, os vícios, as relações de poder e a luta pela sobrevivência do negro nativo, do poderoso branco estrangeiro, do asiático comerciante e do mulato fruto de toda esta intercepção racial ao longo da nossa história como nação é aqui muito bem descrito por Azagaia e convida-nos a reflectir nao só sobre as nossas origens e condições, como também sobre o contributo que cada um destes grupos tem feito para o “status quo” nacional.
Na terceira música do disco, intitulada “Maçonaria”, Azagaia apresenta-nos um diálogo introspectivo sobre as forças de poder mundiais, abordando as dinâmicas colonialistas da história da humanidade que definiram e influenciam até hoje as relações políticas, económicas, sociais e culturais de poder entre o Ocidente e os países do Terceiro Mundo. O génio da inovação em Azagaia volta aqui a aparecer e o casamento entre a criatividade lírica e uma musicalidade que transcende os limites tradicionais do nosso Hip Hop nacional (e até mesmo da nossa música alternativa) consecutem num dos melhores arranjos sonoros que o rapper já fez. Essa maturidade musical consolida-se ainda mais na faixa sonora que se segue, intitulada “Começa em Ti”, um convite inadiável à mudança interior sobre tudo aquilo que molda as nossas acções, atitudes, comportamentos e personalidade. Com efeito, “para mudar o mundo antes devo me mudar”” é um chamamento ao renascimento do homem novo que o nosso projecto de nação a dado momento histórico abraçou e que se deixou esvair pelos ventos da globalização e suas condicionantes. Os desafios que o “deus dinheiro” e as referências materialistas dele derivados apresenta à nossa sociedade faz com que os excluídos do seu desfruto anseiem desesperadamente por uma revolução ideológico-comportamental que muitas vezes morre na praia do conformismo, da indiferença ou do pessimismo: “toda a gente quer mudança mas ninguem muda”. É precisamente na esteira desse desiderato que surge a música “ABC do Preconceito”, outra radiografia descritiva das influências do neoliberalismo na degradação das nossas estruturas como naçao, como Estado e como sociedade. Poderosos que incutem a sua verdade sobre os que deles dependem financeiramente, os direitos humanos que são protelados em função de “interesses superiores’’ e o anestesiamento deliberado da juventude com a massificação da oferta alcoólica ou de entretenimento vazio e estupidificante, dentre outros, são aqui apresentados dentro de uma perspectiva percepcional que, de uma forma ou de outra, todos partilhamos, vivenciamos ou testemunhamos. A música que a segue, intitulada “Subir na Vida”, é outro remate que, por cima de um arranjo musical estupendo, traça o perfil psicológico do fenómeno de comercialização de carácter que parece estar a triunfar na sociedade moçambicana. Novamente, o “deus dinheiro’’ é aqui exposto como o catalizador de ascensão e queda nas relações profissionais e pessoais, onde indivíduos corrompem ou se deixam corromper na ânsia desesperada pela sobrevivência ou pela manutenção de uma pretensa estabilidade social e financeira que é fixada sempre pelo preço que estamos dispostos a pagar ou a receber. Daí existir sempre um “Mister e Miss Moçambique”, a música que se segue e que retrata a república de aparências na qual interagem o jovem e a jovem moderna em Moçambique: elas vivem esteticamente como retratos piratas de estrelas públicas internacionais de novelas, moda e música; eles enganam e se enganam sustentando um personagem imaginário que nunca foram e jamais o serão. Então se vão iludindo, vivendo a vida dos outros e atirando a sua própria na penumbra do esgoto existencial, investindo num projecto insustentável de mentiras transparentes que os estampa com catálogos catastróficos de estupidez e nulidade pessoal.
A faixa “Wa Gaia”, para além de trazer uma frescura sonora ao álbum, introduz-nos àquilo que me parece ser a sua principal mensagem: a sugestão de ruptura para com tudo o que nos estupidifica como moçambicanos. Na verdade, ‘’nada é pior do que deixar de ser digno” constitui um apelo à integridade de carácter de todo aquele que se vê envolvido ou que se quer comprometer com o desenvolvimento efectivo do nosso país. A música “Revolução Já”, certamente um dos melhores cartões de visita de Cubaliwa e também com uma cadência rítmica e uma sonoridade envolvente, apresenta as fundações em que se poderá basear tal ruptura, das correntes da globalização aos cárceres exploradores das nossas lideranças políticas. Com efeito, o rapper convidado Tira-Teimas aparece a estampar a razão de tal cisão nos seguintes versos:
“...porra, estou enjoado dessa história
perdi a crença pelos símbolos da vitória
acreditei nas forças da mudança
democracia... mas era tudo uma farsa
hoje em dia, dirigentes abastados
e o povo? Coitado, continua esfomeado...’’

De agora em diante, Cubaliwa entra numa espiral de sonoridade, texto e vozes em que se congrega o manifesto rumo ao Moçambique que um círculo cada vez mais crescente de compatriotas, aos mais diversos níveis, pretende para o país, de agora em diante. A música “Países do Medo”, trazendo uma análise tridimensional entre Moçambique, Angola e Portugal, reflecte sobre a maldição do boom das riquezas naturais e a apetência inescrupulosa dos grandes interesses do capital internacional, versus a sua apropriação e desfruto pela oligarquia política no poder e os níveis cada vez mais catastróficos de exclusão e de empobrecimento das massas locais. “Carne de Canhão’’, a música que vem a seguir, convida-nos a sermos os próprios sujeitos da mudança que ansiamos para o nosso país e a libertarmo-nos do medo dos agentes repressores que protegem e perpetuam um regime cada vez mais insensível às reivindicações do povo que (des)governam. Por conseguinte, a faixa “Homem Bomba” legitima de modo explosivo a pertinência de um levantamento popular que rompa com os sistemáticos abusos, exploração, incompetência e arbitrariedades em que somos governados. Azagaia expõe a hipocrisia e o intragável contrasenso entre o discurso oficial dos nossos dirigentes e a sua postura quotidiana, assente sabiamente neste verso: “... pedem-nos para poupar... com exemplos de como esbanjar?!”
E o álbum nao poderia terminar de melhor forma do que com a proposta avançada pela faixa “A Minha Geração’’, que constitui a meu ver um poderoso chamamento à luta de libertação juvenil rumo a um Moçambique melhor, inclusivo, justo, democrático e próspero, completamente distinto do país actual. Apresentando um retrato aterrador da promiscuidade, instrumentalização e generalizada alienação da nossa geração, Azagaia propõe um inversão total e completa nos valores, na atitude, na postura e na acção da nossa geração, se esta não quiser ser responsável e responsabilizada pelo colapso do nosso presente e do nosso futuro. Com efeito, só aos jovens de hoje é que se incute a responsabilidade pelo resgate da nossa pátria das masmorras dos algozes que nos libertaram do colonialismo ontem e que hoje nos impingem com o “direito histórico’’ de governação, bem como o de beneficiação exclusiva e incondicional das nossas riquezas, recursos e oportunidades. Para quem ainda tenha dúvidas de que geração Azagaia se refere, aqui deixo ficar alguns trechos da letra da música:
“(...) a chamada geração de vândalos e marginais
a mesma que enche comícios em campanhas eleitorais
(...) eu sou da geração que não deixa o nó da gravata
prender o grito de libertação que explode na garganta
(...) eu sou da geração que discute ideias
Não importa se são de Simango ou do camarada Eneas
(...) eu sou da geração dos combatentes, não dos obedientes
Dos intervenientes, não dos convenientes
Aquela que morde o beef sem dentes
(...) pergunta, quem não conhece a minha geração
a que em Fevereiro e Setembro fez parar uma nação
A geração enteada do poder
(...) enganam-se, porque eu sou a geração da liderança
daqueles que perdem a vida, depois a esperança
por isso não aceitamos fazer merda por dinheiro
(...)
Porque a minha geração acredita em mais do que vê
em mais do que lê
(...)
Presta atenção, man
Presta atenção!
Nós não nos devemos ajoelhar!
Nós viemos conquistar!”

O convite à ruptura para com este estado negativo de coisas está feito. Cabe-nos assumirmos devidamente o nosso papel e sermos os próprios actores da mudança política, social e cultural que pretendemos. Como muito bem diz na faixa de abertura do álbum Cubaliwa, Azagaia pelo menos não mentiu. Disse a verdade na tua cara. E tu, vais te calar?!

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