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segunda-feira, 30 de maio de 2016

Moçambique já foi auto-suficiente em farinha de milho, arroz, laranja... antes da independência

 
 
 
Tema de Fundo - Tema de Fundo
Escrito por Adérito Caldeira  em 30 Maio 2016
Foto de Adérito CaldeiraO nosso país que hoje importa até repolho já foi, antes da independência, uma das mais pujantes economias de África produzindo não só comida para o consumo interno mas também para a exportação, “(...) nós não comprávamos farinha milho de fora (...) arroz nós comíamos da província da Zambézia (...) nunca comprávamos laranja da África do Sul (...) éramos o segundo país produtor de copra no mundo”, afirma o professor João José Uthui em entrevista ao @Verdade onde aponta como solução para voltarmos a ser auto-suficientes “desenhar o modelo de desenvolvimento económico que nos permita produzir utilizando a matéria-prima que temos, investir na educação e na agricultura mecanizada”.
“Eu penso que o grande problema que nós temos é não o que é nosso, nós não produzimos nada” começa por diagnosticar o académico que, quando questionado pelo @Verdade sobre quando é que o nosso país já foi auto-suficiente, diz que a sua perspectiva começa antes da independência nacional pois nasceu e viveu nesse tempo.
“Em 1968, 69 e 70, Moçambique era a nona economia de África, depois dos Países do Magreb, Nigéria, Angola, África do Sul e do Zimbabwe. Alguns miúdos quando digo hoje que a manta que você usam nós já fabricamos, dizem este velho conta sempre anedotas, mas é a verdade. Já produzimos mantas iguais a estas que estamos a ir buscar na África do Sul com o algodão produzido em Nampula. Tínhamos mantas de todas as qualidades, desde mantas para o chão, mantas para militares, para uso em hotéis e até para exportação para Europa. Tínhamos três fábricas de cobertores”, declara Uthui que se escusa de falar nas fábricas de castanha de cajú “porque a amêndoa saía já com o rótulo daqui”.
Ainda relacionada à produção do algodão o nosso entrevista refere que o país produzia vestuário a partir de tecidos produzidos localmente. “Tínhamos a Riopele, a Texlom, a Soveste, a Texmanta em Mocuba, a Fafezal na Zambézia todos estes eram produtores de tecidos, quer de cordas de sisal de linho, de teia de aranha e de algodão”. “Por isso é que João Ferreira dos Santos dava dinheiro a todos os camponeses para comprarem os insumos, que ele vendia, lavrava a terra e dizia o teu campo é este mas não vende a mais ninguém, isto é para eu comprar e daí tinham o arroz, a farinha e o caril garantido durante todo o ano porque sabiam que daquela machamba produziam algodão, e era monocultura. O que é que aconteceu de errado, depois da independência? Não vou aqui falar sobre isso”, acrescenta João José Uthui que é Conselheiro da organização não governamental Grupo Moçambicano da Dívida.
Moçambique nunca comprava laranja da África do Sul
Sobre a produção de comida Uthui recorda-se que “(...) nós não comprávamos farinha de milho de fora, a única farinha que vinha de fora era o trigo para fazer o pão. Havia farinha de primeira, segunda e terceira. O arroz nós comíamos de Musselo Novo, na província da Zambézia. Lopes e Irmãos tinham a fábrica de descasque de arroz em Mucubela na Maganja da Costa, era uma das fábricas. João Ferreira dos Santos em Gaza tinha a fábrica SorGaza, no Xai-Xai. Tínhamos em Angoche três fábricas de descasque de arroz, trabalhavam com arroz produzido aqui”.
Além disso, “Cardiga, que era o dono de gado em Changalane tinha animais que comiam sêmea da fábrica de arroz, produzia carne, depois a pele era usada na fábrica de curtumes aqui. Os nossos sapateiros não íam comprar pele na África do Sul para fazer sapato, e tínhamos também a fábrica (de sapatos) aqui. As lojas de sapatos compravam calçados às fabricas daqui para vender aos moçambicanos” diz Uthui referindo que desconhecem estes factos quem nasceu depois de 1975.
Ademais, de acordo com o professor universitário, Moçambique nunca comprava laranja da África do Sul. “Se for a Manjacaze existe um zona chamada Laranjeira, aquele nome surgiu exactamente porque se produzia laranjas. Não vou falar de Manica ou do Niassa, só aqui do Sul. E as pessoas dali faziam a vida à custa da laranja que se produzia ali, então imagina quanta laranja se produzia”.
“Sabe que nós éramos os segundo país produtor de copra no mundo? E produzíamos sabão, nós nunca comprávamos o sabão fora porque tínhamos aqui a custa da nossa copra, onde foi?”, aponta João Uthui que questionado sobre o que aconteceu depois da independência para que tudo isso se perdesse sugere ao jornalista “explorar para saber o que é que aconteceu para não termos isto tudo”, mas dá algumas pistas.
O projecto agrícola de Mandela para o Niassa
Foto de Adérito Caldeira“Eu vou lhe dar um exemplo de um modelo de utilização das terras do Niassa. Quando Mandela (Nelson) entrou para o poder (como Presidente da África do Sul) convenceu o Chissano (Presidente de Moçambique) a utilizar as terras, mandando farmeiros (sul-africanos) para aqui. Porque a intenção de Mandela era de ter a região auto-suficiente em termos de agricultura, e sabia que Moçambique tinha extensões de terra muito grandes ociosas. Fizeram a fotometria, numa avião especializado, alguns farmeiros boers fizeram uma associação, chamada Mozagrius, para trabalhar terra em Majune, eu era um dos indivíduos que estava à frente desse processo do lado da Sociedade Civil”, relata o académico.
Segundo o nosso entrevistado, para materializar este projecto que iniciou por volta de 1996, “Moçambique tinha que entrar com alguns milhões de dólares, e a África do Sul com outros, era uma sociedade de igual para igual. Mandela disse a Chissano vou-lhe mandar aí 500 farmeiros da Câmara dos Agricultores, você também organiza farmeiros. Chissano disse sim, mas sabia que não tinha farmeiros, tinha camponeses. Mas como ele tinha perspectiva de fazer crescer, o projecto rezava que a cada dois farmeiros brancos sul-africanos existiria um moçambicano, as machambas iriam alternar-se com essa lógica”.
“Sabe o que é que aconteceu, quando as políticas não estão bem desenhadas e os interesses penetram, a selecção dos camponeses (moçambicanos) foi um desastre, por que eu queria meter a minha mãe, para falar em meu nome embora eu não seja farmeiro mas como sei que se vai tirar proveito dali queria meter um meu familiar que ainda por cima não sabia nada de machamba”, explica João Uthui.
“Os sul-africanos nomearam uma economista especializada em economia agrária, para dirigir. A senhora dona Maria veio da África do Sul com a família e instalaram-se no Niassa, no local onde as machambas deveriam ser criadas. A contraparte moçambicana era um economista, não lhe vou dizer o nome, mas vivia em Maputo. Tinha que apanhar o avião para ir ver as machambas, já a senhora Maria está lá e visitava os farmeiros sul-africanos todos os dias” declara o professor acrescentando que “Instalaram-se em Majune, inicialmente, algumas dezenas de farmeiros que vieram com as suas famílias e instalaram as casas de pau a pique. Os camponeses da contra-parte moçambicana, alguns, viviam em Lichinga”.
O projecto não tinha como funcionar, de acordo com Uthui que era um dos implementadores, porque enquanto o farmeiro sul-africano “que vivia em Majune tinha Land-Rover para circular, tinha máquinas agrícolas, pluviómetro e tinha um silo. Tinha ainda um plasma liga à internet, via satélite, para controlar a variação do custo do quilo dos produtos que iria plantar. O moçambicano não tinha casa em Majune, vivia em Lichinga, não tinha carro para ir para lá, tinha bicicleta, não ia todos os dias, como é que o projecto iria funcionar. E nós dissemos que o projecto ia morrer, alguns dos meus colegas foram ameaçados quando disseram isso. Os boers ficaram zangados e foram-se embora”, conclui o professor universitário.
Como é que Moçambique alcança a auto-suficiência alimentar?
Tendo em conta a experiência de Uthui o @Verdade questionou então como é que Moçambique inverte a situação actual a alcança a auto-suficiencia alimentar?
O professor responde, desenhando um “modelo de desenvolvimento económico que nos permita produzir utilizando a matéria-prima que temos, investir na educação e na agricultura mecanizada” porém “tem é que haver vontade das pessoas que estão à frente para pegarem no dinheiro que nos emprestam e investir para produzir”.
Relativamente às políticas que o actual executivo se propõe a implementar para aumentar a produção João Uthui é céptico. “Eu gostaria de ter certeza mas não tenho. Não é só ler nos papéis e estar nos seminários ouvir que existe, eu quero ver a aplicação na terra. No tempo colonial eu não precisava de ler que havia política de produção porque eu via, nunca comi arroz da China, comi agora depois da independência”, conclui o académico.

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