07/05/2018
Por Roberto Julio Tibana
Há luto, oficial ou não, assumido por uns e não por outros, mas eu respeito o luto e havia decidido não postar até esse período de nojo passar. Infelizmente não consigo resistir a uma sugestão feita pelo Tomas Mario no Programa Televisivo da Stv, “Pontos de Vista” deste Domingo (6 de Maio de 2018). Tanto mais que o incidente que deu origem a esse comentário, e os desenvolvimentos que a ele levaram, podem dar um outro enquadramento ao momento histórico que vivemos esta semana marcada pela morte do Presidente Afonso Dhlakama.
O incidente foi a morte de uma criança num dos bairros periurbanos do Município da Matola, vítima de uma “bala perdida” disparada por militares dum quartel próximo a zona residencial. Esse incidente trouxe á tona os conflitos que existem entre as populações desse bairro e os militares do quartel ali implantado.
No seu comentário o Tomas Mario perentoriamente afirmou que a única maneira de em definitivo resolver os problemas das relações conflituosas entre a população e os militares em zonas onde atualmente se situam os quarteis governamentais seria a transferência dessas populações para zonas bem distantes desses quarteis. Note-se: não propõe que antes de se implantarem os quarteis se transfiram as populações. Nem propõe que os quarteis que foram colocados próximos das zonas de residência de populações civis sejam de lá retirados. Propõe que as populações que foram lá encontradas e a volta das quais se implantaram os quarteis, sejam agora retiradas para longe desses quarteis.
Vou dar ao comentador um benefício de dúvida, assumindo que falou assim porque está a falar de uma situação de facto, nomeadamente que os quarteis já foram implantados. Mesmo assim, qual o critério que ele usa para sugerir que perante esta situação de facto, o ónus da sua correção deve recair sobre as populações? Bem, se calhar vai dizer que custa menos reassentar as populações do que remover o quartel dali! Aí eu desafiaria isso pedindo que me mostrasse um estudo económico-social que mostrasse que seja assim, notando que esse estudo teria que não deixar de considerar o abate dos custos de transferência do quartel os benefícios que resultariam em transformar as suas instalações em (por exemplo) uma escola secundária ou técnica, ou um centro de saúde para servir as populações daquele bairro. Há custos e benefícios para tudo!
Este tipo de pronunciamentos do comentador residente Tomás Vieira Mário revelou para mim não só uma ignorância crassa da maneira como esses quarteis têm sido implantados, como até o mesmo espírito do governo do dia: o governo existe para ele, e não para os governados, e por isso onde estes “atrapalham” as atividades do governo, devem ser “afastados” (se não suprimidos!). Muito perigoso.
Há luto, oficial ou não, assumido por uns e não por outros, mas eu respeito o luto e havia decidido não postar até esse período de nojo passar. Infelizmente não consigo resistir a uma sugestão feita pelo Tomas Mario no Programa Televisivo da Stv, “Pontos de Vista” deste Domingo (6 de Maio de 2018). Tanto mais que o incidente que deu origem a esse comentário, e os desenvolvimentos que a ele levaram, podem dar um outro enquadramento ao momento histórico que vivemos esta semana marcada pela morte do Presidente Afonso Dhlakama.
O incidente foi a morte de uma criança num dos bairros periurbanos do Município da Matola, vítima de uma “bala perdida” disparada por militares dum quartel próximo a zona residencial. Esse incidente trouxe á tona os conflitos que existem entre as populações desse bairro e os militares do quartel ali implantado.
No seu comentário o Tomas Mario perentoriamente afirmou que a única maneira de em definitivo resolver os problemas das relações conflituosas entre a população e os militares em zonas onde atualmente se situam os quarteis governamentais seria a transferência dessas populações para zonas bem distantes desses quarteis. Note-se: não propõe que antes de se implantarem os quarteis se transfiram as populações. Nem propõe que os quarteis que foram colocados próximos das zonas de residência de populações civis sejam de lá retirados. Propõe que as populações que foram lá encontradas e a volta das quais se implantaram os quarteis, sejam agora retiradas para longe desses quarteis.
Vou dar ao comentador um benefício de dúvida, assumindo que falou assim porque está a falar de uma situação de facto, nomeadamente que os quarteis já foram implantados. Mesmo assim, qual o critério que ele usa para sugerir que perante esta situação de facto, o ónus da sua correção deve recair sobre as populações? Bem, se calhar vai dizer que custa menos reassentar as populações do que remover o quartel dali! Aí eu desafiaria isso pedindo que me mostrasse um estudo económico-social que mostrasse que seja assim, notando que esse estudo teria que não deixar de considerar o abate dos custos de transferência do quartel os benefícios que resultariam em transformar as suas instalações em (por exemplo) uma escola secundária ou técnica, ou um centro de saúde para servir as populações daquele bairro. Há custos e benefícios para tudo!
Este tipo de pronunciamentos do comentador residente Tomás Vieira Mário revelou para mim não só uma ignorância crassa da maneira como esses quarteis têm sido implantados, como até o mesmo espírito do governo do dia: o governo existe para ele, e não para os governados, e por isso onde estes “atrapalham” as atividades do governo, devem ser “afastados” (se não suprimidos!). Muito perigoso.
Alguns dos quarteis que agora se localizam em zonas habitadas por civis (no meio de civis!) foram lá encontrar essas populações, e não o contrário. Não foram as populações que se aproximaram dos quarteis. Foram os quarteis que se foram meter no seio da população. Vou substanciar mais com um pouco de história que eu conheço pessoalmente (e muitos nela se verão e até poderiam acrescentar mais).
Por exemplo: Boquisso e Mucatine, ainda no Município da Matola, a menos de 50Km do centro da cidade de Maputo. Eu vivi parte da minha infância e juventude em Boquisso, e mais tarde em adulto vim estabelecer e minha residência mais a frente, no bairro vizinho de Mucatine, que faz fronteira do Município da Matola com o Distrito da Moamba. Quando em 1971/2 desbravamos terra onde a casa da família ia ficar em Boquisso, isto era verdadeiro mato e até matamos hienas! Havia somente uma loja. Não havia mercado. E depois Boquisso foi crescendo como zona habitacional. Nos meados dos anos 1980s, com o recrudescimento da guerra civil, e a medida em que a cidade ia ficando sob cerco da RENAMO, foi criado um perímetro de quarteis a volta de Maputo. De um lado para acelerar a formação do exército, e de outro lado provavelmente como perímetro de defesa da capital. Foi assim que vieram colocar um quartel em Boquisso que passou por uma sério de funções, e agora parece ser considerada uma escola de engenharia militar ou coisa do género. Esse quartel fica a beira da Estrada, e a menos de trezentos metros do Mercado do Boquisso. Logo, em vizinhança de roçar ombros com uma zona residencial desde muito antes habitada pela população civil local.
Quando os meus pais ainda viviam, e eu já residia na cidade de Maputo, nos princípios dos anos 2000, numa visita a eles deparei-me com o bairro do Boquisso muito traumatizado pela ação dos militares do exército governamental saídos desse quartel. Não entraram na casa dos meus pais (por razões que um dia irei contar!), mas andaram por toda a aldeia a partir e a levar portas e janelas. Estávamos a pouco mais de dez anos depois do fim da guerra civil (!).
Quando perguntei a minha mãe e aos vizinhos qual a justificação que deram para isso a resposta foi que os soldados disseram que estavam a levar portas e janelas para fazer lenha no quartel porque lá não tinham lenha. Que se vivia mal no quarte eu sabia, pois ainda durante a guerra os soldados do governo que estavam nesse quartel foram várias vezes ameaçar os meus pais para lhes darem o pouco que colhiam nas suas machambas argumentando que não tinham comida no quartel. Mas que mais de dez anos depois do fim da guerra civil nós pudéssemos ter soldados do exército governamental a menos de 50km de Maputo a andarem a vandalizar as populações civis por comida e suas portas e janelas para fazer lenha, para mim foi um choque muito grande. Não tivesse sido a minha mãe e a vizinhança com que convivi na infância e juventude a reportarem isso, talvez não tivesse acreditado. Mas mais ou menos nessas semanas aconteciam os espancamentos das populações civis da Catembe pelos militares da marinha, esse facto até foi reportado pelas televisões.
Isto era (e ainda é) a continuação de uma cultura e práticas que sabemos se desenvolveu durante a guerra civil. As mentalidades no seio do exército governamental não mudaram.
E para não dizerem que estou a fazer especulações e generalizações posso mencionar mais.
Ainda durante a guerra, as autoridades militares aquí nesta zona andaram a arrebanhar as populações dos Bairros de Boquisso, Mucatine e parte de Mali e lhes foram colocar num aglomerado que chamaram de Aldeia Comunal, bem mais próximo do quartel. Os meus pais foram para lá levados, até um dia se libertarem, mas sem poderem voltar para a sua casa no Boquisso, pois isso era proibido! [Tivemos que lhes trazer para o Bairro Luís Cabral para viverem na pobreza abjeta de que se tinham libertado décadas atrás quando nos princípios dos anos 70 decidiram ir viver para o campo onde a economia rural gerida pela minha mãe poderia complementar os parcos rendimentos de servente de segunda classe do meu pai!]. Mais do que algo feito para proteger as populações, a mim parece que esta era um operação de fazer da população um escudo para os militares do governo acantonados no quartel, e para retirar o espaço de possível apoio das populações locais aos guerrilheiros da RENAMO que atacavam a periferia de Maputo. Pois se as pessoas preferiam e sentiam-se mais seguras nas suas casas, porque razão de lá retirá-las e aglomerá-las mais próximo do quartel?
[Fast forward!]. Mais contemporaneamente. Eu vivo aquí no Bairro de Mucatine. Menos de cinco anos atrás vieram enfiar-nos aqui mais um quartel. Treinam-se comandos. Fica a menos de quinhentos metros do antigo (que ainda lá permanece) e a mais ou menos a mesma distância da minha casa. Eu comecei a construir e a viver nesta minha casa em 2007, numa zona demarcada pelo Conselho Municipal da Matola como zona de residência. E essa demarcação foi feita em 1998/99 (portanto, eu comecei a viver aquí dez anos depois de o espaço me ter sido atribuído.
Durante o tempo entre a alocação do espaço e eu fixar residência permanente eu estava (e ainda continuo!) a tratar do DUAT que nunca chegou a sair até hoje. E esperei os dez anos, aturando a burocracia toda da mudança sucessiva dos “sistemas” de DUAT (levando cada vez ao reinício do pedido, numa zona parcelada e alocada pelo próprio Conselho Municipal em conjunto com as estruturas e populações locais), para ter a certeza de que por lei de facto eu poderia construir aquí. E de facto até eu começar a desenvolver a minha propriedade e a viver aqui as pedras de demarcação colocadas pelo Conselho Municipal estavam (e ainda estão) intactas. Tando mais que nunca deixei a propriedade abandonada.
E como eu, muitas pessoas se estabeleceram aquí, tanto na zona demarcada como não, outras vindas de outros pontos do país, e outras sendo novas famílias desxendentes de famílias locais. A população cresceu. Mesmo assim, vieram enfiar-nos um quartel de formação de forças especiais aquí praticamente a porta das nossas casas. E depois a comunicação social reportou os problemas que se seguiram. O militares começaram a reclamar terreno para além do perímetro inicial do quartel novo. Até chegaram a implantar vedações em arrame farpado. O caminho para a minha casa quase foi fechado por essas vedações, de tal modo que foi necessário negociar uma entrada para passarmos para as nossas casas.
Eu pessoalmente fui parado várias vezes por soldados em treino com armas verdadeiras e possivelmente com balas reais nos carregadores, e a apontarem essas armas para mim no interior do meu carro, e a mandarem parar até eles passarem ou acabarem de fazer o que estivessem a fazer. Isto a menos de trezentos metros da minha casa, e a cinquenta ou menos metros de distância das casas de outras pessoas. Muitas vezes esses soldados surgiam-nos do mato, de repente, camuflados, com a possibilidade real de um acidente pois poderia facilmente não os ver e continuar a marcha, e isso ser visto como sinal de desobediência e merecer um tiro.
Felizmente nunca houve um incidente desse tipo, mas já houve muitos estragos aquí cometidos pelos soldados junto da população, que muitas vezes não são reportados porque as pessoas têm medo e sabem que ninguém lhes vai defender. Várias vezes os estrondos de explosivos no quartel fazem estremecer os vidros da minha casa. E dormimos sempre a pensar no dia em que nos vai cair um obus dentro. Para além da prostituição e violações de menores que grassa por aquí. Há jovens da vizinhança aqui para as quais ainda crianças menores eu comprei livros e fardamento e mandei para a escola (acredito muito na educação para superar a pobreza!), mas que na adolescência desistiram porque o negócio da prostituição e outros vícios com soldados aparentemente rende mais. E os pais perderam o seu controlo.
Foi preciso uma resistência local que até ameaçava uma “guerra”, para os militares abandonarem as terras que estavam a usurpar e tentando delas expulsar as populações. O Conselho Municipal teve que vir dar paliativos. E a bomba relógio momentaneamente parou. Agora o Conselho Municipal periodicamente aparece a fazer a demarcação de partes dessas terras aparentemente para mais um assentamento ordeiro das populações. Mas eu vejo militares (reconhecidos como tais porque até fardados!) a fazerem limpezas e agricultura nesses terremos demarcados pelo Conselho Municipal. Isto sugere que pela “porta do cavalo” eles estão a ter acesso a essas terras em prejuízo de populações civis que nelas cultivavam para subsistência, e que assim passam a ver as suas parcelas reduzidíssimas em tamanho para talhões de “20mX30m” ou coisa do género (se não menos), numa zona periurbana em que muitos ainda vivem da agricultura como economia principal ou fortemente complementar de outros rendimentos.
Mas o mais grave disto, é que nós nunca vimos nenhum soldado desses dois quarteis sair em ajuda da população mesmo em casos de acidentes naturais. Quando dois anos atrás houve aquí um vendaval que arrasou casas e partiu arvores por todo o lado, não vimos nenhum militar a sair para ajudar a desbloquear as vias de acesso e a reconstruir as casas ou cosntruir abrigos temporários para os desalojados. Uma grande árvore de cajueiro que caiu e obstruiu a estrada mesmo em frente do quartel que fica próximo do mercado de Boquisso permaneceu lá mais de três meses, e a estrada foi sendo debloqueada a medida ia secandom e as populações (e se calhar tambem os próprios militares) iam cortando os seus ramos para fazer lenha. Mas quando um carro pára mesmo por avaria na zona próxima do quartel os militares vêm a correr e de armas apontadas exigem que a pessoa retire o carro dalí (e sem ajuda!). Já aconteceu isso comigo, e num incidente em que tinha um carro quase a pegar fogo. E também algumas vezes tive que rebocar carros de outras pessoas para lhes retirar rapidamente de próximo do quartel porque os limitares nem se quer lhes deixavam tempo para substituir um pneu furado! E também não ajudavam, claro!
Poucos meses atrás o próprio Ministro da Defesa veio a público denunciar veementemente o facto de que os soldados não conseguem produzir o mínimo que seria possível com os meios que têm. Eu não fiquei espantado quando o ouvi a dizer isso. Tenho estado a acompanhar isto através de vários episódios desde mais de duas décadas. Só falei dos que estão mais perto de mim pessoalmente para não ter a chatice de ter que responder a pessoas que me podem vir dizer “prove”, como se não soubessem que isso acontece.
Moral da história: temos um exército de caserna, parasita, sem espírito nenhum de servir o povo, e que pelas atitudes leva a concluir que ele vê nas populações civis um inimigo. O incidente da morte de uma criança por “bala perdida” de militares num outro bairro periurbano do Município da Matola é mais um episódio entre muitos que revelam as consequências de uma falta de uma estratégia de desenvolvimento das forças de defesa e segurança imbuídas de espírito de servir o povo. Mais ou menos ao espelho do governo que o mantém. E as relações entre a população civil e os militares vão continuar a ser de hostilidade crescente enquanto o cenário dentro do exército (bem como da polícia e de outras forças de segurança) permanece aquilo que foi a cultura desenvolvida durante a guerra civil.
Nos últimos dias li e ouvi exaltações e linchamentos ao falecido Presidente da RENAMO.
Paz a sua alma!
Mas a medida que ia lendo e ouvindo esses linchamentos e exaltações, vinham-me a memória as coisas de que falei acima, e toda a ambivalência a elas associada, e que devia desautorizar-nos de fazer julgamentos rápidos e emocionais de partes da nossa historia, em particular dos atos dos seus protagonistas. E a medida em que lia e ouvia histórias pessoais dos sofrimentos que as pessoas passaram ou testemunharam mais diretamente os atos bárbaros que foram cometidos pelos dois exércitos durante a guerra, a minha convicção de que neste momento de luto o melhor era manter-me em silêncio se consolidou. Mas a sugestão descuidada do Tomas Vieira Mário de que eu, os meus vizinhos, e outras populações em outros lugares temos que considerar a possibilidade de virmos a ser retirados dos locais de residência onde alguns de nós fomos autorizados a construir e outros vivemos desde tempos imemoriais, para dar lugar aos desmandos dos militares do exército governamental que nos vieram encontrar aquí, só porque têm a força das armas… essa não! Mexeu mais ainda com os meus sentimentos.
Há coisas sobre as quais certas pessoas não deviam abrir a boca, e francamente nao sei por que razão algumas vezes o fazem.
Mas agora recolho-me ao meu silêncio e à minha reflexão.
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