EDITORIAL
Na passada quarta-feira, a cidade da Beira esteve literalmente para dizer “Adeus, vá em paz” ao cidadão Afonso Macacho Marceta Dhlakama, presidente da Renamo. Foi a enterrar um cidadão, um líder, um pai, um irmão e filho com uma folha de serviços impressionante. Um homem que viveu a sua vida ou fez da sua vida um instrumento para defender aquilo a que Max Weber chamou “tipo ideal” de sociedade e de República.
Obviamente que é um homem que, como qualquer outro ser mortal, também tem um relatório com páginas de erros pela falibilidade humana de se atingir a perfeição. E pelos erros, que podem ser interpretados como graves ou não, coube-lhe vários epítetos, sendo o mais afiado o de “bandido”. Se é justo, ou não, que assim se chame ao homem que hoje vai enterrar, cabe às razões que cada um vai perfilar para construir o seu argumento. E no campo dos argumentos, os que forem menos generosos, para não lhes chamar “zangados”, poderão até celebrar o fim de quem nunca deveria ter existido. Esses não podem ser ignorados, porque, provavelmente, perderam os seus familiares em circunstâncias cuja narrativa pintou Afonso Dhlakama como autor-mor. E são muitos.
Há também aqueles para quem o seu projecto de vida ou de sociedade se esfumou por acção cuja responsabilidade se fez recair sobre Afonso Dhlakama. E, se essas zangas existem, também têm a sua razão de ser, e há alguma legitimidade nisso, em função do que aconteceu e do que esses moçambicanos viveram na pele, ou lhes foi transmitido como acervo oral da História. Mas há outros tantos que estão do outro lado da barricada, que choram ou celebram a partida, a todos os níveis inesperada, do seu herói e que se sentem órfãos de uma voz que ecoava mais alto, em seu auxílio, quando as suas não mais podiam. Há esses que choram o moçambicano provavelmente mais corajoso da jovem História de Moçambique. Esses também existem. E são milhões.
Esses milhões de cidadãos que hoje choram têm uma outra narrativa da ficha de serviço de Afonso Dhlakama, que a morte encerrou, com alguma dose de arrogância, na passada quinta-feira. São pessoas que também viram os seus familiares serem fuzilados em praças públicas, sob fortes salvas de palmas populares, sem direito a um julgamento nem um advogado. São pessoas que perderam os seus bens porque não eram culpados do ónus que caía sobre eles, mas apenas suspeitos de uma situação que também podia ter sido fabricada para os incriminar, e como a lógica era toda invertida, o ónus da prova não cabia a quem acusava, mas o acusado tinha de provar que era inocente, mas em vão, porque a sentença era mesmo uma bala na nuca ou um festival de humilhantes chibatadas.
Na passada quarta-feira, a cidade da Beira esteve literalmente para dizer “Adeus, vá em paz” ao cidadão Afonso Macacho Marceta Dhlakama, presidente da Renamo. Foi a enterrar um cidadão, um líder, um pai, um irmão e filho com uma folha de serviços impressionante. Um homem que viveu a sua vida ou fez da sua vida um instrumento para defender aquilo a que Max Weber chamou “tipo ideal” de sociedade e de República.
Obviamente que é um homem que, como qualquer outro ser mortal, também tem um relatório com páginas de erros pela falibilidade humana de se atingir a perfeição. E pelos erros, que podem ser interpretados como graves ou não, coube-lhe vários epítetos, sendo o mais afiado o de “bandido”. Se é justo, ou não, que assim se chame ao homem que hoje vai enterrar, cabe às razões que cada um vai perfilar para construir o seu argumento. E no campo dos argumentos, os que forem menos generosos, para não lhes chamar “zangados”, poderão até celebrar o fim de quem nunca deveria ter existido. Esses não podem ser ignorados, porque, provavelmente, perderam os seus familiares em circunstâncias cuja narrativa pintou Afonso Dhlakama como autor-mor. E são muitos.
Há também aqueles para quem o seu projecto de vida ou de sociedade se esfumou por acção cuja responsabilidade se fez recair sobre Afonso Dhlakama. E, se essas zangas existem, também têm a sua razão de ser, e há alguma legitimidade nisso, em função do que aconteceu e do que esses moçambicanos viveram na pele, ou lhes foi transmitido como acervo oral da História. Mas há outros tantos que estão do outro lado da barricada, que choram ou celebram a partida, a todos os níveis inesperada, do seu herói e que se sentem órfãos de uma voz que ecoava mais alto, em seu auxílio, quando as suas não mais podiam. Há esses que choram o moçambicano provavelmente mais corajoso da jovem História de Moçambique. Esses também existem. E são milhões.
Esses milhões de cidadãos que hoje choram têm uma outra narrativa da ficha de serviço de Afonso Dhlakama, que a morte encerrou, com alguma dose de arrogância, na passada quinta-feira. São pessoas que também viram os seus familiares serem fuzilados em praças públicas, sob fortes salvas de palmas populares, sem direito a um julgamento nem um advogado. São pessoas que perderam os seus bens porque não eram culpados do ónus que caía sobre eles, mas apenas suspeitos de uma situação que também podia ter sido fabricada para os incriminar, e como a lógica era toda invertida, o ónus da prova não cabia a quem acusava, mas o acusado tinha de provar que era inocente, mas em vão, porque a sentença era mesmo uma bala na nuca ou um festival de humilhantes chibatadas.
Esses também existem, a par daqueles a quem, por terem um pensamento não muito enquadrado com o pensamento oficial dominante, não lhes foi permitido apresentar uma ficha de argumentos que lhes permitiria assacar a razão da sualógica, porque, a esses tais, o sistema só permitia que aceitassem a morte como moeda de troca de qualquer pensamento alternativo. Essa franja de moçambicanos existe e viu na luta de Afonso Dhlakama um escape e uma oportunidade para acabar com aquilo que, no seu ver, não era nada mais e nada menos do que uma ditadura de sangue.
Viram em Dhlakama um corajoso sem paralelo, que, muito jovem, assumiu uma luta cujos frutos todos os moçambicanos entre os que matavam e eram mortos hoje usufruem, ainda que em projecto, cujas arestas ficaram por polir. Se Dhlakama é a maldição para uns ou benquerença para outros, é uma questão de honestidade. E analisar Dhlakama tendo como ponto de análise o jogo de extremos sempre disponíveis é reduzir a dimensão de quem há muito deixou de ser um habitante para se tornar um fenómeno.
Ter um debate tabulado sobre o bom e o mal, luz ou trevas, é aceitar que o debate sobre Afonso Dhlakama seja um equiparado a um jogo de fortuna ou azar, quando, na verdade, Dhlakama ultrapassa a ciência do próprio jogo. E a História, que tem estado a obrigar-se a ela própria a fazer justiça, tem o cuidado de absolver Afonso Dhlakama. Se Dhlakama foi excessivo na sua actuação, então convenhamos que ninguém tem moral para falar da falta de excessos do adversário que Dhlakama combateu até ao seu último dia. Ultimamente, caçado como um animal, Afonso Dhlakama trocou a dignidade a que todos temos direito como homens livres para viver o calvário da mata, entregue a todo o tipo de má sorte. E a má sorte tem a particularidade de não ser receosa de convites cheirosos e perfumados e minimamente bem formulados.
Dhlakama habituou-se a conviver com a má sorte, que se tornou sua companheira ao ponto de não ter passado pela cabeça de ninguém que um dia a má sorte lhe pudesse virar as costas e consumi-lo. Ficámos todos sossegados no conforto da almofada da nossa anormalidade como cidadãos, a acreditar na imortalidade de um homem que não passava de um ser humano, apenas um pouco mais ousado e disponível que nós outros. Assistimos a Dhlakama a ser vítima de sucessivos ataques de morte e achámos tudo normal. Assistimos a Dhlakama a ser vítima da mais ignóbil campanha de propaganda contra a sua dignidade e até a dos seus mais directos familiares e continuámos a achar muito normal.
E, no fim, assistimos a Dhlakama a preferir viver nas matas, onde nenhum de nós viveria, e também achámos tudo uma normalidade. Dhlakama morreu como a qualquer outro ser humano está destinado. Para o que ninguém estava preparado era para a morte de Dhlakama, porque nos habituou a vários números de sobrevivência, até que esgotou toda a sua ciência de viver não vivendo. Se este homem é bandido ou não, para nós não é esse o debate. Até porque bandidos somos todos nós que permitimos e assistimos a um homem a ser caçado e fustigado todos os dias quando até concordávamos com o móbil da sua luta. Bandido é o cidadão que vive num país com uma Constituição da República que garante liberdade e demais direitos, mas que nada faz quando essa liberdade é colocada em causa, ao ponto de achar normal que um grupo, seja ele qual for, tenha livre-trânsito para emboscar e matar impunemente.
Dhlakama lutou um bom combate e não morreu no hospital. Morreu a defender os seus ideais. Se hoje todos vivemos uma nova fase, fruto da conquista de um bandido, então somos todos bandidos. Se há um conjunto de reformas que são fruto da luta de um bandido, então preparemo-nos para elevar a nossa fasquia de banditismo, porque, mais uma vez cobardemente, vamos usufruir das conquistas de um bandido.
Até sempre, General Afonso! (Canal de Moçambique / Canalmoz)
CANALMOZ – 14.05.2018
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