06/08/2019
As eleições de Outubro em Moçambique ajudaram a acelerar o novo acordo de paz, que estava a ser negociado desde 2016 e vai ser assinado hoje em Maputo. Antes disso, houve centenas de rondas negociais complexas e uma decisão simples: afastar os mediadores
Haverá mil razões para Moçambique ter conseguido chegar ao terceiro acordo de paz, que será assinado hoje em Maputo.
De todas, uma foi decisiva. Resume-se na palavra “telefone”.
Foi em Novembro de 2016 que Filipe Nyusi, Presidente e líder da Frelimo, no poder desde 1975, e Afonso Dhlakama, líder histórico da Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), que mantém guerrilheiros no mato, acordaram que tinham de “tomar o pulso do processo” de paz e “decidiram começar a falar directamente um com o outro por telefone”, conta Alex Vines, director do departamento de África do think tank britânico Chatham House, no ensaio Prospects for a Sustainable Elite Bargain in Mozambique — Third Time Lucky?, publicado ontem online.
Nyusi estava em Maputo, a capital, e Dhlakama no mato, na serra da Gorongosa, província de Sofala, a mais de mil quilómetros de distância.
Tinham para trás 16 anos de guerra civil (1977-1992), seguidos de um breve regresso à guerra eufemisticamente chamado “tensão político-militar” (2014-16). E, pelo meio, duas leis de amnistia (para crimes da Renamo) e dois acordos de paz falhados (1992 e 2014).
Para trás tinham também dezenas de rondas de negociações mediadas por moçambicanos e estrangeiros.
Entre Abril de 2013 e Agosto de 2015, houve 114 rondas de paz, contabiliza Vines no seu novo ensaio. Entre Maio e Dezembro de 2016, houve mais 47. No Verão de 2016, aterraram em Maputo mediadores da União Europeia (UE), da Igreja Católica e “estrelas globais” como o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair e o ex-Presidente da Tanzânia Jakaya Kikwete.
Fora o próprio Dhlakama quem, em 2013, escrevera uma carta ao então Presidente Armando Guebuza a propor mediadores internacionais e nacionais no processo de paz. Três anos depois, no entanto, as duas partes pareciam arrependidas.
Tanto Dhlakama como Nyusi estavam “frustrados com as intrigas dentro das suas equipas de negociação”, escreve Vines. Além disso, alguns mediadores sentiam que Mario Rafaelli e Ângelo Romano — que tinham regressado como mediadores da UE depois de terem sido os mediadores do Acordo Geral de Paz de 1992, assinado em Roma, em nome do Governo italiano e da Comunidade de Santo Egídio “estavam demasiado preocupados em proteger o legado do acordo de Roma e expunham as suas opiniões de uma forma excessivamente pública”. Na altura, foram noticiados desmentidos dos dois lados em relação a declarações saídas das negociações.
O facilitador discreto
Falarem ao telefone directamente foi um “avanço que mostrou que os dois homens sentiam que podiam chegar a um novo acordo e queriam um processo com mais controlo moçambicano”, diz o investigador, que no último ano visitou duas vezes Moçambique, onde entrevistou membros da Renamo, da Frelimo e mediadores.
A 16 de Dezembro de 2016, poucos dias depois de decidirem mudar o método de diálogo, praticamente todos os mediadores internacionais tinham deixado o país. Não é segredo que, nesta fase, existia, entre mediadores, diplomatas e moçambicanos, a percepção de que alguns “negociadores-estrela” internacionais não teriam pressa em terminar o processo de paz porque isso representaria o fim dos seus salários elevados.
Dias após esta ruptura, o embaixador suíço em Moçambique, Mirko Manzoni, Jonathan Powell e Neha Sanghrajka, do Centre for Humanitarian Dialogue, passaram a trabalhar como facilitadores do diálogo directo e contínuo entre os dois líderes moçambicanos.
Logo nesse mês, foi anunciado um cessar-fogo. Primeiro de uma semana, depois de mais 60 dias, depois de mais um mês e a seguir sem prazo.
Em Agosto de 2017 — e pela primeira vez em dois anos — os dois homens falam cara a cara. Sinal do progresso, Nyusi viaja até à serra da Gorongosa para se encontrar com Dhlakama. Os dois são fotografados no mato, sentados em cadeiras de lona postas num chão de terra numa clareira aberta na floresta.
O trabalho do embaixador Manzoni parece ser bem avaliado pelos dois lados. Diplomatas e analistas ouvidos pelo PÚBLICO sublinham a sua eficácia, discrição e capacidade de criar um ambiente de confiança.
Em Julho, António Guterres criou um novo cargo nas Nações Unidas para o processo de paz moçambicano, enviado pessoal do secretário-geral para Moçambique, e escolheu o. Manzoni tem como função “prestar bons ofícios na facilitação do diálogo” e na “implementação do acordo de paz”.
Integração e armas
A essência deste terceiro acordo é definir a integração dos guerrilheiros da Renamo nas forças de defesa e segurança do Estado e da polícia de Moçambique, e a entrega das armas à Comissão dos Assuntos Militares, disse ao PÚBLICO Fernando Jorge Cardoso, investigador do Instituto Marquês de Valle Flôr e especialista em assuntos africanos.
Não são conhecidos os números de combatentes ou ex-guerrilheiros da Renamo e os dados são contraditórios.
Serão 800 homens, 3000, 5200?
Há uma semana, numa cerimónia em Sandjudjira, na Gorongosa, apresentada como “início do processo de Desarmamento, Desmobilização e Reintegração (DDR)”, quatro guerrilheiros entregaram as suas armas ao Estado e 46 registaram os seus dados pessoais na comissão, de modo a entregarem as armas em breve. O novo líder da Renamo, Ossufo Momade, falou em momento “histórico e de grande simbolismo” e disse que 5221 membros da Renamo vão entregar armas em todo o país num prazo que não concretizou.
Por outro lado, uma “antropóloga holandesa [Nikkie Wiegink] que passou vários anos [no centro de Moçambique] calcula que cerca de três mil ex-guerrilheiros da Renamo vivem no distrito de Maringué, na província de Sofala, sem receberem qualquer apoio financeiro e têm estado ‘à espera’ que o partido lhes atribua benefícios”, escreve Vines no ensaio.
Os números são relevantes porque representam dinheiro necessário para a integração e pagamento de pensões. “Moçambique continua a ser um bom exemplo de desmobilização, mas fraco na reintegração”, diz o investigador da Chattam House.
“Ainda é preciso definir estratégias para dar resposta aos redutos de combatentes que se mantém unidos, em particular no centro”.
Parece ser unânime que as eleições de 15 de Outubro vão ser o primeiro teste a este terceiro acordo de paz. São eleições gerais, nas quais serão escolhidos o Presidente, o Parlamento e os governadores, mas os olhos estão todos postos nos últimos.
Vai ser a primeira vez que os governadores das dez províncias serão eleitos por voto universal e não nomeados pelo Presidente da República. Foi uma questão negociada durante muito tempo, com concessões de parte a parte e que acabou por levar a uma mudança da Constituição.
Um dos cenários possíveis é que a Renamo ganhe três províncias. De entre os seus candidatos a governador, estão Manuel de Araújo para a Zambézia, e Ricardo Tomás, para Tete, dois políticos populares que saíram do MDM, partido nascido de uma dissidência da Renamo; António Muchanga para Maputo; Alfredo Magumisse para Manica, e Luis Trinta Mecupia para Nampula.
“Estas nomeações mostram que a Renamo está seriamente a tentar conquistar estas províncias e espera conseguir lugares”, escreve Vines.
“A província de Sofala deverá ser mais difícil”, pois Elias Dhlakama, irmão mais novo do antigo líder, foi apanhado de surpresa com a sua nomeação e acabou por recusar ser candidato.
Mas Fernando Jorge Cardoso diz que “não ficaria admirado se a Frelimo perdesse em Sofala”, bastião da Renamo. O especialista vê como “grande possibilidade” a Renamo ganhar na província de Maputo (para onde se mudaram milhares de pessoas do Norte e do Centro nos últimos anos) e de Cabo Delgado (o que seria uma derrota para a Frelimo) e o MDM ganhar em Sofala (o que seria uma derrota para a Renamo). Nampula e Zambézia deverão ser ganhas pela Renamo.
Depois de 44 anos sem “paz efectiva”, o novo cenário de aprofundamento da democracia não afasta a dúvida central. A pergunta é de Vines: “Se a Renamo ganhar três cargos de governador, isso será suficiente para um novo acordo sustentável?”
PÚBLICO(Lisboa) – 06.08.2019
Posted at 11:57 in Defesa - Forças Armadas, Eleições 2019 Gerais, Justiça - Polícia - Tribunais, Política - Partidos | Permalink
Às vezes fico aqui a olhar,...a e sua voz...não e me é estranha...
Por esse motivo,
perceba; se quer lutar por algo que não existe, deve fazer-se sócio de D. Quixote de la Mancha. Aí...
Matolinha.