Joana Simeão: uma entrevista a “Seara Nova”, em Março de 1974
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Poderia começar por falar-me um pouco da sua infância, do ambiente onde nasceu e cresceu.
- Nampula era então, há 36 anos, um burgo simples. A minha infância foi banal, embora começasse a sentir desde muito nova que alguma coisa estava mal na sociedade em que vivia. Pelas experiências que tive, pela discriminação que sentia. Papá pôs-me a estudar numa escola particular para me subtrair a um certo número de medidas discriminatórias que existiam, na época, no ensino oficial. Havia também um conjunto de regras sociais a que nos tínhamos que submeter. As raparigas não podiam brincar com rapazes, por exemplo e isso confundia-me. Frequentemente, Papá, que era um simples “choffeur”, apanhava-me no meio dos criados e ralhava.
No meio dos criados? Tinha criados?
- Sim, toda a gente tinha. Chegou a altura de ir para o liceu, e ai uma vez mais o Papá preferiu mandar-me para um colégio. Mas a irmã recusou a minha entrada. Pela primeira vez na história do lugar aparecia uma negra a querer fazer o liceu. E o Papá, que entretanto se tornou “choffeur” do bispo, falou com este e acabou por ser por sua influência que fui admitida. Fiz assim o primeiro e o segundo anos, mas em condições psicológicas péssimas: o dia a dia, a recusa na matricula, tal e tal. A certa altura o Papá disse: “bem, isto está mesmo tão difícil que o melhor é ires para a metrópole, mais a tua irmã. E escreveu para o Colégio de Santa Cruz, em Coimbra, para onde acabei por entrar, graças a umas facilidades que obtivemos através do Ministério do Ultramar, e onde fizemos o sétimo ano, eu e a Nina.
A Senhora foi uma negra que pôde estudar até à universidade. Isso é raro.
- Sim, foi um cometa, o meu caso.
É Capaz de dizer-me se essa situação ainda se mantém?
- Não. Absolutamente não.
Saberá dizer-me quantos estudantes negros acabaram o sétimo ano em 1972-73 nos diversos liceus de Moçambique?
- Não sei. Mas sei que é um número superior ao que existia no meu tempo.
Sim, naturalmente, mas não tem uma ideia?
- Não sei, com franqueza. Isso mostra a minha ignorância na matéria.
E na Universidade, qual é a frequência?
- É grande. Agora formaram-se três médicos. Pode dizer: é pouco. Pois é, mas antes não havia nada disso.
Tem muitos colegas negros, a senhora?
- Eu sou a única no meu Liceu.
E noutros liceus?
- Há, isso há.
Numerosos?
- Numerosos não?
E na universidade, tem muitos colegas?
- Só conheço um professor de românicas.
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Gostaria que falássemos um pouco de si. Importa-se?
- Mais?
Sente-se cansada?
- Diga-la, diga la o que é que quer! Mas eu depois QUERO ler o que vai escrever, sabe?
Pode confiar, o gravador não engana e eu limitar-me-ei a pôr no papel as suas afirmações e as minhas perguntas.
Bom… portanto a senhora regressou a Portugal em 1971. Qual era a sua situação em paris, na altura?.
Trabalhava, era secretaria na Radiotelevisão Francesa…….
NB: A primeira parte esta emhttps://www.facebook.com/eusebioandre.pedro/posts/1206834016023934
Joana Simeão e o ideal do encontro de raças sem confrontação
Nampula, 4 de Novembro de 1937 nasce Joana Francisca Fonseca Simeão, filha de José Luís Simeão e de Leopoldina Rebelo Fonseca Simeão. O pai, motorista dos Bispos D. Teófilo José Pereira de Andrade e D. Manuel de Medeiros Guerreiro, fez de tudo para ver a filha formada. O percurso político da Joana Simeão teve a ver com o seu dia-a-dia. Frequentando o ensino primário numa escola perto da administração, em Nampula, via pessoas negras a serem violentadas e amarradas. Em 1944, na primeira classe, presenciou uma coisa que marcou a sua vida, ao assistir crianças pretas apanhando palmadas. Relacionou aquilo com a cor da pele. Três décadas mais tarde, em retrospectiva, recordará por estes momentos ao acrescentar: «E, aconteceu também que uma vez minha mãe mandou-me à administração pedir a um cipaio nosso amigo para libertar um preto que tinha sido preso sem motivo». Quando completou a 4ª classe que era limite para a maioria dos pretos, o pai tentou enviar ela e sua irmã de sangue, Ana Simeão, para o colégio das freiras que recusaram, alegando que nunca tinham tido alunas pretas. Este foi o segundo episódio racial ocorrido na sua vida. Contará este episódio ao Eduardo Mondlane, com quem partilhava grande parte dos ideais. «Como éramos negras, as freiras não aceitaram até que o meu pai replicasse ao Bispo de Nampula de quem era motorista». A vida no colégio e a discriminação a que as duas irmãs eram sujeitas serviam para formar o espírito de revolta política da Joana. Se por um lado sofria a discriminação pela cor da pele, por outro lado notava que as poucas oportunidades que existiam eram dadas aos homens.
Aos 15 anos, isto é, em 1952, pela ordem do pai, as duas filhas (Joana Simeão e Ana Simeão) foram enviadas para o Colégio de Santa Cruz, em Coimbra-Portugal. Quando fizeram o sexto ano, o pai ficou impossibilitado de pagar as mensalidades em resultado de um acidente. Disso resultou que as duas foram duplamente impedidas de assistirem às aulas e de lagar o colégio, por serem reféns de dívida. Sem capacidade para estar em contacto com os pais, sem família em Portugal, com um ano lectivo perdido, Joana aventurou-se para Lisboa onde marcou a sua primeira audiência com o então Ministro das Colónias, Manuel Maria Sarmento Rodrigues. Dele conseguiu apoio para ela e a irmã concluírem o 7º ano sem pagar. Era a terceira experiência dolorosa e desabafou: «se nós não fossemos negras, isso não acontecia». Enquanto frequentava o sétimo ano, foi nomeada vogal da «Casa dos Estudantes do Império, o ninho da formação política» por meio do qual conhecerá e conviverá, mais tarde, com outros nacionalistas entre os quais Mariano Matsinhe, Sérgio Vieira, Pascoal Mucumbi, Joaquim Chissano. Em 1958 escreveu o seu primeiro artigo publicado pela Associação dos Naturais de Moçambique no «A voz de Moçambique». No grupo de trabalhos tinha observado que os mistos tendiam a isolar-se dos negros, pelo que defendeu a necessidade de uma convivência social harmoniosa entre as diferentes raças. Mais tarde, viria a dizer a um governante que «Foi preciso a Frelimo e o Coremo, a UPA e todos os outros movimentos fazerem o que fizeram para vocês verem o problema». O sonho do pai era que cursasse Medicina mas ela seguiu Direito, curso que considerava poder responder bem às «reivindicações de ordem política que tiveram nela uma forma anárquica, uma mistura mórbida de encontrar ou realizar um encontro entre raças sem confrontação». Com efeito, defendia que devia haver uma frente de moçambicanos lúcidos, que englobasse todas as raças presentes em Moçambique.
Em 1959 entrou para o Curso de Direito, em Coimbra, tendo concluído o primeiro ano. Para o ano lectivo 1960/1961 notou que as condições de vida não lhe eram fáceis e revolveu seguir para Lisboa, a fim de procurar algum emprego. Com ajuda de Adriano Moreira, empregou-se no Ministério do Ultramar, como arquivista e pode frequentar o segundo ano de Direito em Lisboa. Em 1961, fez uma curta visita a Moçambique e, quando regressou a Lisboa, empregou-se no Ministério da Economia sem, contudo, deixar de participar dos eventos políticos. A sua facilidade em encontrar emprego, no regime que tinha começado a ser combatido em Angola, criava nos colegas a suspeita de ser uma agente da PIDE. Um episódio havido entre eles, num grupo de debate, precipitou a conclusão do que até então era mera suspeita. Naquele encontro, a Joana alertara ao grupo que todos deviam trabalhar tendo na mente uma verdade: «todo o Estado possui e trabalha com uma Polícia secreta».
Na sequência da fuga de 41 estudantes ultramarinos, após incidentes de Angola, a Joana precipita-se como asilada política na embaixada da Venezuela. Entretanto, o embaixador acabou por dizer-lhe que das investigações feitas, não havia nada contra ela e que, se quisesse sair, ninguém a prenderia. Saiu da embaixada da Venezuela para a da Indonésia numa altura em que Mondlane estava a criar uma rede de «engajamento de estudantes ultramarinos» para a qual fora convidada a tomar parte. Mondlane recomendara um encontro com um colega que ao fim e ao cabo acabou por trai-la a PIDE. No começo, garantiram-lhe que tudo já estava tratado e que ela fosse à Covilhã, a um hotel; alguém a iria levar para a Espanha. Era uma cilada de um agente duplo que não a queria entre os nacionalistas. Quem apareceu, na verdade, foi a PIDE. Presa, levada para Lisboa, passou por interrogações, humilhações e maus tratos. O relatório do interrogatório deixou claro que, apesar da intimidação «a Joana continuou a defender o seu ideal dizendo que havia uma injustiça social baseada na raça e que ela não era comunista porque todos os comunistas são racistas. Afirmou ter uma orientação e uma tendência democrata-liberal. Condenou a inflexibilidade do regime em não permitir as liberdades cívicas, sobretudo aos homens de raça negra, sem necessidade. Ela diz que luta por um regime onde cada um pudesse expor as suas ideias sem ter que pagar por aquilo que diz». Liberta pela PIDE, em 1963, empregou-se na Sonap & Cilda, como secretária de direcção. Desta vez, legalmente, submeteu um pedido de passaporte, para ir a Espanha, porque sempre quis fugir.
Em 1964, com ajuda do namorado, fugiu para Argel onde conheceu a Frelimo, por meio de Marcelino dos Santos. Ai, pela sua surpresa, encontrou-se com um dos colegas com quem tinha divergências aquando da acusação de «espia» e os fantasmas do passado voltaram na sua mente. Mesmo consciente de que pesava sobre ela a suspeita de ser agente psico-social da PIDE, aceitou trabalhar como dactilógrafa, no escritório da Frelimo. Ela própria dirá, mais tarde, «aceitei, apesar de saber que uma suspeita pesava sobre mim: eu era agente da PIDE, coisa fantástica… Aquando de nossos encontros eu tinha dito aos colegas que todo o Estado tem uma Polícia Secreta. Esta simples declaração criou uma situação intolerável. Quero frisar que a minha filiação na Frelimo foi um mero acidente de recurso. Não tinha, na altura, para onde ir». E ironizando contra os acusadores, desabafou: «E hoje, vendo as coisas à distância começo a rir ao verificar que os anjinhos e os puros dos grupos revolucionários mantêm relações com algumas polícias secretas, e ainda mais, recebem dinheiro e por vezes devem-lhes mesmo a vida. Estou hoje convencida que [alguém] escapou a tempo graças a um desses informadores. Em 1965, aos 28 anos, casou-se com Serge Tshilenge (jovem congolês da tribo baluba, estudante da Faculdade de Direito de Assas (Paris), em Argel. Tshirenge encontrava-se a trabalhar na embaixada do seu País com ajuda de Ben Bella, seu amigo pessoal mas derrube de Bella obrigará o recém-casal a seguir para Paris. Mondlane, com quem partilhava muitos pontos de vista, dissera para que o casal fosse a Dar-es-Salaam, mas o marido preferiu Paris àquela cidade. Em 1966, chegou a Paris onde se registou como Ivette Joana Tshilenge, com ajuda do amigo do marido. Teve assim, uma nacionalidade congolesa.
Em 14 de Março de 1967 teve a primeira filha, Cecile Tshirenge. A 25 de Maio do ano seguinte nasceu o segundo filho. Mas a vida familiar não era bem-sucedida e, por vezes, o esposo usava o passaporte como objecto de chantagem. Ela empregou-se na TV Francesa, após ter conseguido que o Vaticano apoiasse o seu projecto para retirar as meninas negras das ruas de Paris. Esta iniciativa nobre lhe valerá acusação entre os machistas do seu tempo. Diabolizada sob todas as formas, a Joana prosseguiu com o ideal de ajudar que parte das prostitutas negras de Paris conseguisse algum trabalho fixo e se retirassem da rua. Projectava viajar aos governos africanos para negociar vagas de modo que algumas daquelas meninas pudessem ter espaço em seus países, começar com as do Congo Kinshasa. Com efeito, viajou para Kinshasa, ao encontro do ministro dos assuntos sociais, mas aqui conheceu Holden Roberto que achou interessante a sua actividade e prometeu pôr-lhe em contacto com os chefes do Coremo, sediados em Lusaka, tendo-lhe pago a passagem de avião.
A 24 de Agosto de 1970, chegou a Lusaka e constatou que nesta altura, Paulo José Gumane, presidente do Comité Revolucionário de Moçambique (COREMO) encontrava-se isolado pelos amigos, Absalon Titus Bahule e Mahlatini Ngome. Nesta mesma noite, foi jantar na casa de Mariano Matsinhe, «meu grande amigo». Três dias depois, distribuiu panfletos pelas ruas de Lusaka, na qualidade de Presidente da Associação da Juventude Feminina Africana na Europa. Daqui recebeu a missão de ser propagandista do COREMO na Europa onde já residia o Dr. Campos com quem teve muitos desentendimentos, devido a velha suspeita. Os seus opositores tinham espalhado uma fama segundo a qual ela pertencia à «uma associação vergonhosa, de prostitutas africanas para arranjar dinheiro na Europa». Como propagandista do COREMO, conseguiu mobilizar apoio mas o partido não conseguiu pagar o transporte e ficou retido em Londres e Bruxelas. A 2 de Fevereiro de 1971, chegou inesperadamente a Lusaka com os dois filhos, tendo se hospedado na casa de Paulo Gumane. Nesta altura, o Coremo tinha capturado cinco militares/técnicos portugueses do acampamento de Mucangadeze. Diz-se que teria enviado uma carta ao chefe da Cruz Vermelha, Rene Weber, dizendo que os raptores queriam 7000USD. Além desse valor, devia haver bilhetes de passagem para ela e para os filhos seguirem à Europa/Paris. Weber consultou Absalon Titus Bahule que declinou. Insegura pela suspeita que recaía sobre ela quanto ao pedido de resgate, na ausência de Gumane da casa, refugiou-se para Vitoria Hotel. Entretanto, a versão dela foi a de que apenas traduziu a carta que Bahule redigira. Provavelmente terá fugido quando se apercebeu que os reféns tinham sido executados, medida com a qual não concordava.
A 27 de Fevereiro, fugiu precipitadamente da Zâmbia para a Europa. Na França apresentou-se ao Ministério dos Negócios Estrangeiros e, com ajuda de um Salvo-Conduto, foi a Portugal donde seguirá a Moçambique. Hospedou-se em Dondo, na casa de Jorge Jardim. Estando aqui, a PIDE procurou aliciá-la a fazer uma confissão pública, criticar a Frelimo e ao Coremo. Ela recusou porque segundo suas palavras «lá fora diz-se que a Frelimo vencerá». Em 23 de Dezembro de 1972, foi a Nampula, após 15 anos de ausência. Ai ficou até 28 de Janeiro de 1973. Regressou para Beira onde trabalhou no Notícias da Beira. A sua passagem por Nampula deixou a cidade agitada, conforme o relatório quinzenal do governo local, de 15 a 30 de Janeiro daquele ano. A Joana alugou um salão da Missão S. Pedro onde promoveu danças, comeretes e beberetes aos convidados. Seguiu-se o tempo da fala em que disse: «o preto deixará de ser escravo e eu vim para convosco trabalhar: pretos, mitos…. Brancos, asiáticos; por um Moçambique maior e melhor. Temos que acabar com a indolência Macua, temos de trabalhar para isso, mas primeiro tem de pensar e deixar de ser alarves. Só a aderência aos movimentos de libertação (FRELIMO E COREMO) pode fazer desaparecer a lepra das injustiças». Mais tarde, decidiu-se pelo seu envio a Lourenço Marques, onde foi admitida como professora de Francês no então Liceu António Enes. Mais tarde, criou embaraços na Instituição pois seguiu para a Suécia, onde estava a filha ao cuidado da Ana, sem deixar notas dos estudantes à direcção. A PIDE continuou a querer fazer dela porta-voz da autonomia progressiva, porém, ela agia cautelosamente. No expresso de 22 de Dezembro de 1973, o Dr. Augusto de Carvalho, jornalista daquele Jornal, escrevia, indignado «ou é uma agente do Governo ou uma revolucionária preparada para provocar discórdia, propícias a um movimento subversivo» ao se aperceber de que a Joana continua inflexível com a ideia de Moçambique Independente. Com Máximo Dias, Jorge de Abreu e Cassamo Daude, fundaram Grupo Unid Por Moçambique, cuja vida durou 65 dias. Os três homens mostraram recuo quando ela já tinha os estatutos em mão, elaborados por Máximo Dias. A 7 de Abril de 1974 viajou para Lisboa. Abreu chegou a telefonar-lhe para dizer que «estava arrependido de ter aderido ao Gumo enquanto Máximo Dias já pedira para que ela não fosse fazer entrega dos estatutos para reconhecimento, mas ela prosseguiu.
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