Abriu nesta quarta-feira(01) o ano Judicial de 2017 em Moçambique. A aplicação abusiva da prisão preventiva e a violência doméstica foram o tónica dominante dos discursos do Bastonário da Ordem dos Advogados, da Procuradora-Geral da República e do presidente do Tribunal Supremo. Mas o Acto solene ficou marcado pela ausência inédita do mais alto Magistrado da Nação, o Presidente Filipe Nyusi, que foi representado pelo seu primeiro-ministro. Carlos Agostinho do Rosário, chefe do Governo, entrou calado e saiu mudo.
O Bastonário da Ordem dos Advogados, Flávio Menete, começou por abordar a exclusão social que vivem muitos dos moçambicanos forçados a saírem das suas regiões de origem para cederem lugar aos exploradores do carvão mineral e gás. “A continuarmos neste caminho, daqui a algumas décadas esgotam-se os recursos, as comunidades continuam no mesmo nível de pobreza e os investidores terão enriquecido de forma exageradamente desproporcional aos benefícios oferecidos aos moçambicanos”.
Menete, estreante neste Acto, referiu-se às expectativas da Ordem em relação às investigações em torno das dívidas escondidas e declarou que “é momento de acabarmos com a percepção de que a nossa justiça é forte para os fracos e fraca para os fortes”.
O Bastonário afirmou que o Ministro dos Transportes e Comunicações está a violar a Lei da Probidade “de forma grosseira”, mantendo interesses privados em áreas de negócios do seu pelouro e declarou ser necessário “travar estas situações, chamando os governantes à razão”.
Flávio Menete reiterou o repúdio da Ordem, “pela actuação da polícia e da decisão do Ministro do Interior no que tange à violação de procedimentos aquando da expulsão administrativa da cidadão espanhola Eva, com agentes da polícia a cumprir ordens ilegais, violando os mais elementares deveres profissionais”.
Qual é a Constituição que guia a PRM?
Sobre a actuação da Polícia da República de Moçambique(PRM) o Bastonário da Ordem dos Advogados deu o mote para as críticas ao uso abusivo da prisão preventiva e alertou para “o facto de existirem vários arguidos e réus com perturbações mentais que não têm merecido a atenção das autoridades competentes. Mesmo quando reportadas estas situações e requeridos exames médicos, não há celeridade na tomada de medidas”.
“A nossa polícia continua com a ideia de que o seu desempenho é avaliado em função do número de prisões que realiza, bem como das apresentações de suspeitos nos diversos canais televisivos e outros órgãos de informação” declarou Menete, antecipando-se a PGR, e acrescentou ser necessário “penalizar os agentes da polícia e os profissionais da comunicação social envolvidos”.
De acordo com Menete a “corrupção na polícia tem contribuído para fragilizar o nosso sistema de administração da justiça. O assassinato do Dr. Marcelino Vilanculos, magistrado do Ministério Público, em circunstâncias que levam a crer que o sistema está infiltrado, e a fuga de um dos principais suspeitos, do estabelecimento prisional, são prova de que a corrupção graça a instituição policial e os Serviços Penitenciários”.
O Bastonário aproveitou ainda o evento solene para recordar várias das reclamações dos associados da instituição que dirige destacando que “Os agentes da polícia continuam a dizer que os advogados e advogados estagiários só intervêm nos tribunais”.
“Na melhor das hipóteses os agentes policiais permitem, “excepcionalmente”, dizem eles, que conferenciemos com os constituintes na cela, estando o advogado do lado de fora e o seu constituinte dentro dela, na presença dos demais detidos. A pergunta que não se quer calar é: afinal os nossos polícias vivem outra realidade jurídica? Qual é a Constituição que os guia”, questionou Flávio Menete.
Apresentação pública de indivíduos indiciados de crimes é violação de um direito humano
Tendo o lema escolhido para abertura ano judicial como fio condutor, “Por uma Justiça Humanista e Assente no Pluralismo Jurídico”, a Procuradora-Geral da República(PGR), Beatriz Buchili, começou por exortar “a todos os actores do judiciário e a sociedade, no geral, para a busca da realização de uma justiça, por um lado alicerçada no respeito pelos do Direitos do Homem”.
“É uma justiça que deve ser cultivada antes, no seio familiar e da comunidade onde, por vezes, ocorrem diferendos familiares ou de pequena dimensão local cuja resolução deve ser feita com respeito aos valores atinentes à condição humana. Os casos de violência doméstica ou de linchamentos que ocorrem nas famílias e nas comunidades revelam a ausência do respeito pelos mais elementares direitos humanos”, afirmou Buchili.
A guardiã da legalidade recordou a Polícia da República de Moçambique e a alguns meios de comunicação social que a apresentação pública de indivíduos indiciados da prática de infracção é “uma violação de um direito humano fundamental, alicerçado no Princípio da Presunção de Inocência”. A PGR revelou que em 2016 “o número total da população internada nos estabelecimentos penitenciários atingiu o topo dos últimos 3 anos”.
De acordo com Beatriz Buchili esta superlotação contribui para “situações de tratamento desumano de indivíduos suspeitos de prática de infracções, seja nas celas das esquadras e comandos distritais, acontecendo o mesmo nos estabelecimentos penitenciários e, por vezes, nas Procuradorias e Tribunais”.
A solução, disse a Magistrada, passa não só pela construção de novos estabelecimentos penitenciários mas “pode ser minimizada com o incremento da celeridade processual, a eliminação das detenções ilegais e a aplicação das medidas e penas alternativas à prisão”.
Beatriz Buchili terminou voltando a apelar, tal como no Acto solene de 2016, ao envolvimento e cometimento de todos no “esclarecimento dos crimes e podemos levar os infractores ao julgamento e, por conseguinte, combatermos à criminalidade organizada”.
Prende-se para investigar o que resulta na superlotação das cadeias
Alinhado com a PGR o presidente do Tribunal Supremo, Adelino Muchanga, iniciou o seu discurso abordando a violência doméstica, “é um fenómeno que tem vindo a ganhar contornos alarmantes. Temos vindo a assistir a uma tendência de aumento dos casos que chegam aos tribunais, alguns com contornos de crueldade. Os relatos pormenorizados do modus faciendi e a sua disseminação nas redes sociais, acompanhados de juízos opinativos no mónimo reveladores de total desprezo pela dignidade das pessoas e pelo sofrimento das vítimas e seus familiares, constituem sinais preocupantes do que se passa na nossa sociedade”.
Ainda no mesmo diapasão da Procuradora-Geral da República, Muchanga destacou a preocupação da instituição que dirige com a superlotação das cadeias. “Para uma capacidade de internamento de 8.188, estamos com uma população prisional de 18.000, ou seja, mais que o dobro da capacidade instalada, com óbvias consequências em termos de reabilitação dos reclusos, de custos e da dignidade humana”.
Adelino Muchanga concordou com Buchili nas causas da superlotação, “uso excessivo e abusivo do instituto da prisão preventiva; aplicação de penas de prisão efectiva para a repressão da chamada criminalidade bagatelar; morosidade no julgamento dos processos com réus presos” e constatou que prende-se para investigar. “35% dos reclusos em 2016 estavam em situação de prisão preventiva, muitos sem culpa formada, ou mesmo já com culpa formada, reuniam todos os requisitos legais para aguardar o julgamento em liberdade provisória, mediante caução ou termo de identidade”, afirmou o presidente do Tribunal Supremo que ainda revelou que na população prisional 36% são jovens menores de 25 anos de idade.
Diante da realidade Muchanga disse que é preciso aceitar a “morosidade processual” mas, concordando com a Procuradora-Geral da República, sugeriu a necessidade de se avançar para o “Pluralismo Jurídico”.
“(...) Há que valorizar e acarinhar, através de regulamentação apropriada, a convivência de várias ordens normativas e as diversas instâncias de resolução de conflitos que promovem o multiculturalismo, a tolerância, o respeito pelos diferentes costume, tradições, crenças, línguas, práticas religiosas, sabedorias e filosofias que afirma o desenvolvimento e o respeito pela preservação da dignidade e do bem-estar do povo”, declarou o presidente do Tribunal Supremo sugerindo o processo de regulamentação a aplicar.
Adelino Muchanga concluiu a sua intervenção abrindo o ano judicial e deixando um recado para os juízes manterem a sua independência, “para que não caiam na tentação de tomar as suas decisões influenciados pela opinião publicitada ou até pela opinião pública formada com base em factos estranhos ao processo, porque como é sabido, para o magistrado o que não está nos autos, não está no mundo”.
@VERDADE - 02.03.2017
Qual é a Constituição que guia a PRM?
Sobre a actuação da Polícia da República de Moçambique(PRM) o Bastonário da Ordem dos Advogados deu o mote para as críticas ao uso abusivo da prisão preventiva e alertou para “o facto de existirem vários arguidos e réus com perturbações mentais que não têm merecido a atenção das autoridades competentes. Mesmo quando reportadas estas situações e requeridos exames médicos, não há celeridade na tomada de medidas”.
“A nossa polícia continua com a ideia de que o seu desempenho é avaliado em função do número de prisões que realiza, bem como das apresentações de suspeitos nos diversos canais televisivos e outros órgãos de informação” declarou Menete, antecipando-se a PGR, e acrescentou ser necessário “penalizar os agentes da polícia e os profissionais da comunicação social envolvidos”.
De acordo com Menete a “corrupção na polícia tem contribuído para fragilizar o nosso sistema de administração da justiça. O assassinato do Dr. Marcelino Vilanculos, magistrado do Ministério Público, em circunstâncias que levam a crer que o sistema está infiltrado, e a fuga de um dos principais suspeitos, do estabelecimento prisional, são prova de que a corrupção graça a instituição policial e os Serviços Penitenciários”.
O Bastonário aproveitou ainda o evento solene para recordar várias das reclamações dos associados da instituição que dirige destacando que “Os agentes da polícia continuam a dizer que os advogados e advogados estagiários só intervêm nos tribunais”.
“Na melhor das hipóteses os agentes policiais permitem, “excepcionalmente”, dizem eles, que conferenciemos com os constituintes na cela, estando o advogado do lado de fora e o seu constituinte dentro dela, na presença dos demais detidos. A pergunta que não se quer calar é: afinal os nossos polícias vivem outra realidade jurídica? Qual é a Constituição que os guia”, questionou Flávio Menete.
Apresentação pública de indivíduos indiciados de crimes é violação de um direito humano
Tendo o lema escolhido para abertura ano judicial como fio condutor, “Por uma Justiça Humanista e Assente no Pluralismo Jurídico”, a Procuradora-Geral da República(PGR), Beatriz Buchili, começou por exortar “a todos os actores do judiciário e a sociedade, no geral, para a busca da realização de uma justiça, por um lado alicerçada no respeito pelos do Direitos do Homem”.
“É uma justiça que deve ser cultivada antes, no seio familiar e da comunidade onde, por vezes, ocorrem diferendos familiares ou de pequena dimensão local cuja resolução deve ser feita com respeito aos valores atinentes à condição humana. Os casos de violência doméstica ou de linchamentos que ocorrem nas famílias e nas comunidades revelam a ausência do respeito pelos mais elementares direitos humanos”, afirmou Buchili.
A guardiã da legalidade recordou a Polícia da República de Moçambique e a alguns meios de comunicação social que a apresentação pública de indivíduos indiciados da prática de infracção é “uma violação de um direito humano fundamental, alicerçado no Princípio da Presunção de Inocência”. A PGR revelou que em 2016 “o número total da população internada nos estabelecimentos penitenciários atingiu o topo dos últimos 3 anos”.
De acordo com Beatriz Buchili esta superlotação contribui para “situações de tratamento desumano de indivíduos suspeitos de prática de infracções, seja nas celas das esquadras e comandos distritais, acontecendo o mesmo nos estabelecimentos penitenciários e, por vezes, nas Procuradorias e Tribunais”.
A solução, disse a Magistrada, passa não só pela construção de novos estabelecimentos penitenciários mas “pode ser minimizada com o incremento da celeridade processual, a eliminação das detenções ilegais e a aplicação das medidas e penas alternativas à prisão”.
Beatriz Buchili terminou voltando a apelar, tal como no Acto solene de 2016, ao envolvimento e cometimento de todos no “esclarecimento dos crimes e podemos levar os infractores ao julgamento e, por conseguinte, combatermos à criminalidade organizada”.
Prende-se para investigar o que resulta na superlotação das cadeias
Alinhado com a PGR o presidente do Tribunal Supremo, Adelino Muchanga, iniciou o seu discurso abordando a violência doméstica, “é um fenómeno que tem vindo a ganhar contornos alarmantes. Temos vindo a assistir a uma tendência de aumento dos casos que chegam aos tribunais, alguns com contornos de crueldade. Os relatos pormenorizados do modus faciendi e a sua disseminação nas redes sociais, acompanhados de juízos opinativos no mónimo reveladores de total desprezo pela dignidade das pessoas e pelo sofrimento das vítimas e seus familiares, constituem sinais preocupantes do que se passa na nossa sociedade”.
Ainda no mesmo diapasão da Procuradora-Geral da República, Muchanga destacou a preocupação da instituição que dirige com a superlotação das cadeias. “Para uma capacidade de internamento de 8.188, estamos com uma população prisional de 18.000, ou seja, mais que o dobro da capacidade instalada, com óbvias consequências em termos de reabilitação dos reclusos, de custos e da dignidade humana”.
Adelino Muchanga concordou com Buchili nas causas da superlotação, “uso excessivo e abusivo do instituto da prisão preventiva; aplicação de penas de prisão efectiva para a repressão da chamada criminalidade bagatelar; morosidade no julgamento dos processos com réus presos” e constatou que prende-se para investigar. “35% dos reclusos em 2016 estavam em situação de prisão preventiva, muitos sem culpa formada, ou mesmo já com culpa formada, reuniam todos os requisitos legais para aguardar o julgamento em liberdade provisória, mediante caução ou termo de identidade”, afirmou o presidente do Tribunal Supremo que ainda revelou que na população prisional 36% são jovens menores de 25 anos de idade.
Diante da realidade Muchanga disse que é preciso aceitar a “morosidade processual” mas, concordando com a Procuradora-Geral da República, sugeriu a necessidade de se avançar para o “Pluralismo Jurídico”.
“(...) Há que valorizar e acarinhar, através de regulamentação apropriada, a convivência de várias ordens normativas e as diversas instâncias de resolução de conflitos que promovem o multiculturalismo, a tolerância, o respeito pelos diferentes costume, tradições, crenças, línguas, práticas religiosas, sabedorias e filosofias que afirma o desenvolvimento e o respeito pela preservação da dignidade e do bem-estar do povo”, declarou o presidente do Tribunal Supremo sugerindo o processo de regulamentação a aplicar.
Adelino Muchanga concluiu a sua intervenção abrindo o ano judicial e deixando um recado para os juízes manterem a sua independência, “para que não caiam na tentação de tomar as suas decisões influenciados pela opinião publicitada ou até pela opinião pública formada com base em factos estranhos ao processo, porque como é sabido, para o magistrado o que não está nos autos, não está no mundo”.
@VERDADE - 02.03.2017
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