“A Constituição deve servir os interesses superiores de um povo e não de um punhado de pessoas”
Magro, envelhecido e com palavras comedidas, Afonso Dhlakama ressurgiu a partir do seu burgo, Satungira, onde sempre se esconde quando se sente ameaçado. O lugar é de difícil acesso e quem lá chega pela primeira vez, não conhece o caminho de volta
Os jornalistas abandonam as suas viaturas numa mata e fazem dezenas de quilómetros transportados em motorizadas. Quando pensam que já chegaram ao destino, há ainda sete quilómetros que vão deixar todos cansados, dado que são feitos a pé. No meio de árvores frondosas e que produzem muita sombra, vê-se a “fortaleza” de Afonso Dhlakama: uma casa pequena, construída à base de pau, pique e barro.
O líder da Renamo não era visto há quatro meses. Está mais magro, mais calmo, mas não lhe foge a ideia de governar à força as seis províncias onde teve maior número de votos. Na entrevista que se segue, Dhlakama diz que “ser governador ou administrador não significa ter um espaço físico” e acrescenta que a Frelimo e Filipe Nyusi atropelaram a Constituição, por estarem a governar com base na fraude. O líder da Renamo tem também uma visão simples em relação à Constituição: “A paz e estabilidade política não podem ficar reféns de um papel escrito pelo próprio homem”. A seguir, as partes mais significativas da entrevista com o homem que conduz a Renamo desde Outubro de 1977.
O presidente da Renamo, Afonso Dhlakama, anunciou que vai governar à força, a partir de Março, as províncias onde teve maior número de votos nas eleições gerais de 2014. Como pensa realizar este objectivo?
Sem dúvida que será a contínua luta pela democracia. Pretendemos continuar a lutar e completar os objectivos que traçámos em 1977, quando iniciámos a luta pela democracia. Portanto, que fique claro que não vim cá (Satungira) para voltar a pegar em armas. O que eu queria era continuar a manter encontros populares em todo o país para explicar e orientar o povo sobre os passos que devem ser dados para uma democracia genuína. Mas, infelizmente, os meus irmãos da Frelimo orientaram as Forças Armadas e de Defesa de Moçambique para me eliminarem fisicamente. Isto não é segredo para ninguém. Aliás, as próprias Forças de Defesa já anunciaram publicamente que foram elas que atacaram as minhas comitivas em Manica e, depois, cercaram a minha residência na Beira, facto que me obrigou a sair da Beira a pé até aqui. Aqui, sinto-me seguro. Vim aqui não para mostrar a minha capacidade de guerrilheiro. Vim aqui para mostrar a capacidade de um líder pacífico, um líder ainda com vontade de negociar. Anunciei, de facto, a formação do nosso governo a partir de Março. Talvez me perguntasse… ‘senhor presidente, como é que vai governar nas seis províncias se já existem governadores lá?’. Ser governador ou administrador não significa ter um espaço físico, ou seja, não significa entrarmos no palácio da minha irmã Helena Taipo ou, então, no palácio do governador da Zambézia. A democracia não é feita nos gabinetes. Não precisamos de um gabinete de luxo com ar condicionado, internet e tudo mais, nem precisamos de cadeiras de luxo. Eu estou a dirigir a Renamo a partir de uma casa feita de palha e paus. Governar significa coordenar todas as actividades de todos os distritos. Ter em mão todo o poder executivo, ou seja, a população estar do seu lado e lidar com investidores nacionais e estrangeiros. Agora, se os actuais governadores mostrarem resistência à nossa governação ou, então, ordenarem as Forças de Defesa e Segurança para pôr em causa a nossa governação, aí não teremos outra hipótese senão empurrá-los… um bocadinho… para fora do palácio e colocar os nossos governadores nesses palácios. Portanto, a resposta seria essa. É uma resposta satisfatória e de reconciliação nacional.
A decisão de criar um novo Governo, quando já existe um, atropela a Constituição da República...
Não, não, não. Mas também a nossa Constituição não diz que um partido pode formar um governo sem que tenha ganho as eleições, tal como a Frelimo fez. Legalmente, eu e a Renamo é que estamos no caminho certo, e não estamos a violar a Constituição, pois ganhámos as eleições e podemos por direito formar um governo, tal como o faremos em Março. Aliás, pelo menos, vamos governar onde os editais confirmam que Dhlakama e a Renamo tiveram a maioria. O presidente Nyusi e a Frelimo estão a governar onde perderam ou, então, onde ganharam através de fraude. Estes é que feriram a Constituição.
A Constituição não diz que quem tem maior número de votos numa província deve, a partir daí, governá-la.
Reconheço. A Constituição não diz isso. Mas também a Constituição não diz que quem roubar votos e usar a Polícia para reprimir os seus opositores é que deve governar. A Constituição também não diz que estes que fazem isso, tal como os meus irmãos da Frelimo, devem ser protegidos. Estamos também a brincar com a Constituição de Moçambique. Mas há uma saída para isso. Podemos fazer uma revisão da nossa Constituição. Podemos convidar constitucionalistas nacionais e estrangeiros para fazerem uma emenda à Constituição. A Constituição deve servir os interesses superiores de um povo e não de um punhado de pessoas. A paz e estabilidade política não podem ficar reféns de um papel escrito pelo próprio homem. Chega! Não estamos a dizer que vamos colocar fronteiras no rio Save para dividir o país. Aí sim, estaria a violar a Constituição e a colocar em causa a unidade nacional.
Esta decisão da Renamo significa que o diálogo está definitivamente fechado?
Com certeza. Mesmo se você estivesse no meu lugar, depois daqueles ataques que sofri, toda a confiança que tinha depositado no Governo da Frelimo e no Presidente Nyusi ruía, pior ainda quando eu soube que os ataques foram protagonizados pelas Forças de Defesa e Segurança, que, afinal, são comandadas pela mesma pessoa que diz que quer dialogar comigo. Sinceramente, não atacaram uma base, planificaram a minha morte. Se não morri, é porque Deus está comigo. Então, diga-me lá por que devo acreditar em pessoas que tentaram matar-me três vezes, quando eu sempre mostrei disponibilidade para dialogar. Concluímos que os nossos irmãos não estão interessados no diálogo, então, a partir de agora, vamos ditar as regras. Primeiro, vamos indicar os nossos governadores e só depois vamos negociar, com a questão da minha segurança bem definida e com a mediação da Igreja Católica e do presidente Jacob Zuma, da África do Sul.
Apesar do seu posicionamento, o Presidente da República tem estado a dizer que há contactos e abertura para o diálogo...
Tenho pena. Mas digo que o Presidente da República está a faltar a verdade aos moçambicanos. Ðepois da minha saída da Beira, dias depois dele mandar cercar a minha casa, tenho a certeza que ele é que mandou, pois é o Comandante-em-Chefe das Forças de Defesa e Segurança que estiveram na minha casa, nunca mais houve contacto entre o Governo e a Renamo em torno do diálogo. Perdemos confiança nos mediadores. Eles nem sequer se pronunciaram sobre aqueles acontecimentos e decidimos recorrer à Igreja Católica e a mediação do presidente da África do Sul. Fomos respondidos positivamente tanto pela igreja, assim como pelo presidente sul-africano. Mas tanto a igreja, assim como o presidente sul-africano, estão à espera que o Governo moçambicano manifeste a mesma vontade para nos ajudar. Ainda há dias, vi na STV o Presidente da República a afirmar que fará tudo ao seu alcance para “puxar o presidente Dhlakama para a cidade”. Puxar? Eu não estou num buraco. Eu estou em Moçambique e no meio da população. Se, de facto, há mudança de atitude por parte do Governo, nós estamos preparados. Mas, mesmo que haja mudança de atitude para melhor, a minha resposta será: só depois de estabelecermos o nosso governo. É este governo que ditará as regras de diálogo. Sei que ele estava a falar em me puxar, depois do encontro que manteve com o ministro britânico para África, um ministro que falou durante 25 minutos comigo pelo telefone. Eu recomendei ao ministro para informar o Presidente da República que eu quero a paz. Não quero morrer. Acredito que ele não gostaria que um dia fosse emboscado pelos guerrilheiros da Renamo ao descer de um helicóptero. Não sou terrorista.
O Presidente da República diz que está com dificuldades para dialogar com o seu partido, por falta de organização.
(Risos) Falta de organização? Quando tentaram matar-me não é porque sabiam que eu sou o líder. Temos um secretário-geral que é o número dois. Tenho um gabinete que funciona em Maputo. Temos uma bancada na Assembleia da República. Todos estes órgãos são contactáveis fisicamente e têm hierarquia. Com quem o Governo negociou em Roma? Com quem o Governo negociava no Centro de Conferências Joaquim Chissano? É propaganda. A Renamo tem estrutura. Estrutura não significa apenas Afonso Dhlakama. Para mim, é uma forma de faltar à verdade aos moçambicanos. É uma forma para não justificar os atentados contra a minha pessoa. Fiquei à espera de algum pronunciamento do Chefe de Estado sobre os ataques de Setembro e o cerca à minha casa. Nada. Mas os que atacaram foram as Forças Armadas e o Presidente da República é o Comandante-em-Chefe. Sendo assim, ele sabia dos planos para me eliminarem. Agora afirma que não temos liderança. Agora estou disposto a tratar de questões do futuro do meu país.
Circulam informações dando conta que a Renamo está a treinar jovens e a armá-los. Não. Não estamos a formar jovens. Já houve vários pedidos e todos foram rejeitados. Os guerrilheiros que vocês viram ao longo da caminhada para aqui onde estamos são todos antigos guerrilheiros e é com eles que estamos a colocar novos quartéis nas seis províncias para defender o nosso governo. Não posso esconder isso. Iniciámos esta acção há pouco tempo. É uma resposta às acções do Governo, que todos os dias envia jovens das Forças de Defesa e Segurança para as regiões onde ganhámos. Eu sei que estes vão tentar criar resistência nas regiões onde ganhámos e eu, estrategicamente, como líder e general, mando só três dos meus guerrilheiros para empurrá-los.
Tem estado a dar ordens para os focos de ataques que vêm sendo reportados em algumas zonas do país e que a Polícia atribuiu à Renamo?
Temos quartéis nas províncias. Em resposta aos ataques que temos sofrido nestes quartéis, protagonizados pelas Forças de Defesa e Segurança, temos saído em defesa, como, por exemplo, o que aconteceu em Chigubo, província de Gaza. Tentaram atacar a nossa base. Foram seguidos pelas nossas forças e foram atacados. Em Morrumbala, na Zambézia, está a acontecer o mesmo. Confirmo que os ataques são em resposta aos ataques às nossas bases. Temos feito isso em legítima defesa, aliás, a melhor defesa é o ataque. Já não será como passado. Mas no dia em que o Governo parar de nos seguir, nós pararemos imediatamente.
Como reage ao atentado contra o secretário-geral da Renamo?
Simples. Tentar calar a boca. Sabem que estou em Satungira e ele é o número dois. Quero lembrar que Manuel Bissopo foi baleado quando seguia para o distrito de Marromeu, onde tinha agendado vários encontros políticos com a população. Tentaram matá-lo para nos intimidar. Na Renamo, quando um membro é assassinado por razões políticas, ficamos mais unidos e mais fortes.
Quero aproveitar apelar aos meus irmãos da Frelimo para pararem imediatamente de raptar e assassinar os nossos membros de base. Aqui em Gorongosa há muitos desmobilizados de guerra e membros da Frelimo. Não nos custa nada ir à casa dos mesmos e eliminá-los fisicamente. Felizmente, esta não é prática da Renamo. Somos um partido da Direita e acreditamos em Deus. É pecado para nós. Todo o ser humano tem direito à vida. Sei que há norte-coreanos a treinar jovens numa base de Matalane, que depois são distribuídos pelas províncias do Centro, com uma lista dos membros da Renamo que devem ser abatidos. Estão a criar terror no seio dos nossos membros. Parem, por favor.
Quem é que vê na Renamo como seu sucessor?
(Risos) Não sei, não sei. Cabe a cada membro mostrar trabalho suficiente para conquistar simpatia dos membros e chegar à presidência do partido. Não posso indicar ninguém, porque não se trata de poder tradicional. O meu pai, o régulo Mangunde, está a preparar um dos meus irmãos para lhe substituir. Eu fui eleito e o próximo presidente também deverá ser eleito de acordo com os estatutos do partido.
Sem comentários:
Enviar um comentário